Pesquisar este blog
26 de jun. de 2008
Artigo: Direito penal mínimo e processo penal mínimo
Por Cláudia Cruz Santos, Assistente da Faculdade de Direito da Univers. de Coimbra.
Em um Direito Penal mínimo cuja função seja a tutela estritamente subsidiária de bens jurídicos essenciais, compreende-se facilmente que caiba ao Estado a promoção através do processo penal da defesa desses valores vistos como estruturantes pela comunidade. Ainda que os bens jurídicos protegidos pela norma penal incriminadora tenham um referente primeiramente individual — como sucede com o grosso das incriminações do dito Direito Penal clássico ou de Justiça —, a sua defesa através da Justiça Penal Estadual radica na ideia de que se trata, em última análise, ainda de valores que a comunidade deve garantir no seu próprio interesse, no interesse do todo (mais do que no interesse de todos e, sobretudo, à luz de uma determinada visão do que é o interesse do todo). O Estado surge assim, através do seu aparelho punitivo penal, em primeira linha como o representante da comunidade — o que poderia, pelo menos sob certa perspectiva, levar a um questionamento da sua neutralidade, se for da defesa do interesse colectivo que essencialmente se trata, contra a ameaça demonstrada na conduta do agente —, e não como o representante dos interesses concretos do concreto ofendido pela prática do crime.
Esta concepção da Justiça Penal Estadual — em regra apresentada como um extraordinário avanço civilizacional relacionado com o abandono da vingança privada e vista como um progresso no sentido da igualdade na medida em que a decisão do conflito passa a caber a um terceiro imparcial que aplica uma norma geral e abstracta — é vertida em vários princípios estruturantes, maxime nos princípios da oficialidade e da legalidade da promoção processual penal (com particular vigor nos países ditos de tradição penal européia continental, por muito que este conceito se tenha nas últimas décadas baralhado). Ora, parece inequívoco que um processo penal assim configurado supõe uma estrutura essencialmente bilateral, assente em uma relação principal entre o Estado punitivo, por um lado, e o agente do crime, por outro lado (e pode considerar-se que é assim mesmo num sistema, como o português, em que o ofendido tem a faculdade de se constituir assistente no processo, assumindo assim as vestes de sujeito processual, na medida em que aquele sempre mantém — com excepção, numa determinada perspectiva, do que sucede nos crimes particulares — uma posição acessória face à das autoridades judiciárias). Compreende-se portanto bem que, tendo como pano de fundo este cenário, a reparação dos danos vários sofridos pelo ofendido não constitua finalidade autónoma do processo penal (assim como se tem afirmado, de forma dominante, não constituir um fim ou função da pena criminal).
Todo este acervo de idéias — porventura das mais sólidas no pensamento penal — tem sido objecto, com crescente vigor a partir da década de setenta do século passado, de um questionamento profundo, ainda que nem sempre estruturado e sistemático. O recrudescimento da vitimologia (doravante menos centrada na compreensão das causas explicativas da vitimização de uns e não de outros e mais preocupada com a desconsideração da vítima pelas instâncias formais de controlo); a reflexão sobre a importância da reparação enquanto sanção penal autónoma ou mesmo enquanto finalidade da pena (ainda que para a rejeitar qua tale), que tanto ficou a dever aos estudos conducentes ao Alternativ-Entwurf Wiedergutmachung de 1992; ou a afirmação por Nils Christie de que o Estado roubou o conflito, arrebatando-o às partes nele directamente envolvidas, constituem, todos eles, segmentos argumentativos que vão contribuindo para pôr em causa aquela Justiça Penal em que o Estado e o agente da infracção se enfrentam num processo que poderá culminar com a condenação deste numa pena que visa evitar a sua reincidência (em sentido muito lato) e reafirmar a validade da norma penal violada. Um processo, pois, sempre muito mais orientado no interesse do todo do que no interesse das partes, ainda que se sublinhe a necessidade de o processo ser fair e de no seu decurso se não desprotegerem os direitos fundamentais dos envolvidos.
Assim sendo, o que hoje se deve inquirir é se o Direito Processual Penal deve ser objecto de uma reformulação tão profunda que leve a um alargamento das suas finalidades (com a autonomização da necessidade de, através do processo penal, se lograr o ressarcimento dos danos de naturezas várias sofridos pela vítima, de molde a obter-se uma sua satisfação) e, conseqüentemente, a um alargamento do leque daqueles que devem ser vistos como seus actores principais. Num certo sentido, tratar-se-ia, pois, da admissão de um direito processual penal menos mínimo, por força do alargamento das suas finalidades e dos seus sujeitos.
Não é este, porém, o caminho que se julga que a Justiça Penal futura deve trilhar. Se consideramos que — num Direito Penal que se quer mínimo porque conhece os seus próprios desvalores e reconhece a necessidade da sua autocontenção — qualificadas como crimes devem ser apenas as mais graves de todas as condutas, devemos reconhecer a dimensão pública — mesmo que esta não seja a única dimensão do crime — de tais ofensas. E devemos compreender que a satisfação das necessidades preventivas que decorrem de tal lesão podem não ser inteiramente coincidentes com as aspirações ou necessidades particulares das vítimas. O que equivale a afirmar que a existência de uma Justiça Penal que é repressiva, sancionatória e estadual não pode parificar inteiramente os interesses comunitários, o interesse do agente do crime num tratamento justo e o interesse da vítima na reparação que subjectivamente considera adequada.
A defesa deste processo penal garantístico (que procura equilibrar a promoção do interesse público na ordem e na segurança com a liberdade e o respeito pelos direitos fundamentais) supõe a defesa de um processo penal mínimo (não nas suas garantias mas no seu âmbito de aplicação, nas suas finalidades e nas limitações que necessariamente supõe para a esfera de liberdade dos envolvidos) que seja coerente com o sentido e o âmbito de um Direito Penal mínimo. Daqui não decorre, porém, a incompreensão ou a desconsideração da necessidade de reparar os danos sofridos pela vítima do crime. O que se pretende significar é antes, em primeiro lugar, que são pensáveis soluções de maior participação da vítima no processo penal sem que este seja descaracterizado por um seu alargamento incoerente com a própria teleologia do Direito Penal. Refiro-me, a título de exemplo, à potenciação das soluções de consenso ao longo de todo o iter processual. Mas, em segundo lugar, o que se pretende deixar claro é que se não deve pedir à Justiça Penal aquilo que a Justiça Penal nos não pode dar. Sob pena de, para além de a desvirtuarmos, nos sujeitarmos a que ela em permanência nos decepcione. Assim sendo, julga-se que a reparação desejada pela vítima do crime terá mais adequado acolhimento em outras sedes — exteriores à Justiça Penal ainda que com ela concatenadas —, onde sobreleve um sentido assistencial. Sem nunca se desconsiderar o potencial da mediação penal enquanto instrumento de uma justiça restaurativa.
As várias formas de solução do conflito jurídico-penal fora das instâncias formais de controlo tornarão o Direito Penal mais subsidiário e a Justiça Penal mais mínima, contribuindo assim para um modelo de controlo social do crime mais humano e mais justo. Como sempre propugnou, ao longo destes 15 anos, o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, que com esta breve reflexão pretendo sentidamente homenagear.
Fonte: SANTOS, Cláudia Cruz. Direito penal mínimo e processo penal. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 15, n. 179, p.13, out. 2007.
“É chegada a hora de inverter o paradigma: mentes que amam e corações que pensam.” Barbara Meyer.
"A educação e o ensino são as mais poderosas armas que podes usar para mudar o mundo ... se podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar." (N. Mandela).
"As utopias se tornam realidades a partir do momento em que começam a luta por elas." (Maria Lúcia Karam).
“A verdadeira viagem de descobrimento consiste não em procurar novas terras, mas ver com novos olhos”
Marcel Proust
Livros & Informes
- ACHUTTI, Daniel. Modelos Contemporâneos de Justiça Criminal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.
- AGUIAR, Carla Zamith Boin. Mediação e Justiça Restaurativa. São Paulo: Quartier Latin, 2009.
- ALBUQUERQUE, Teresa Lancry de Gouveia de; ROBALO, Souza. Justiça Restaurativa: um caminho para a humanização do direito. Curitiba: Juruá, 2012. 304p.
- AMSTUTZ, Lorraine Stutzman; MULLET, Judy H. Disciplina restaurativa para escolas: responsabilidade e ambientes de cuidado mútuo. Trad. Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2012.
- AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de; CARVALHO, Salo de. A Crise do Processo Penal e as Novas Formas de Administração da Justiça Criminal. Porto Alegre: Notadez, 2006.
- CERVINI, Raul. Os processos de descriminalização. 2. ed. rev. da tradução. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
- FERREIRA, Francisco Amado. Justiça Restaurativa: Natureza. Finalidades e Instrumentos. Coimbra: Coimbra, 2006.
- GERBER, Daniel; DORNELLES, Marcelo Lemos. Juizados Especiais Criminais Lei n.º 9.099/95: comentários e críticas ao modelo consensual penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.
- Justiça Restaurativa. Revista Sub Judice - Justiça e Sociedade, n. 37, Out./Dez. 2006, Editora Almedina.
- KARAM. Maria Lúcia. Juizados Especiais Criminais: a concretização antecipada do poder de punir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
- KONZEN, Afonso Armando. Justiça Restaurativa e Ato Infracional: Desvelando Sentidos no Itinerário da Alteridade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.
- LEITE, André Lamas. A Mediação Penal de Adultos: um novo paradigma de justiça? analise crítica da lei n. 21/2007, de 12 de junho. Coimbra: Editora Coimbra, 2008.
- MAZZILLI NETO, Ranieri. Os caminhos do Sistema Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007.
- MOLINA, Antonio García-Pablos de; GOMES, Luiz Fávio. Criminologia. Coord. Rogério Sanches Cunha. 6. ed. rev., atual e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
- MULLER, Jean Marie. Não-violência na educação. Trad. de Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Atenas, 2006.
- OLIVEIRA, Ana Sofia Schmidt de. A Vítima e o Direito Penal: uma abordagem do movimento vitimológico e de seu impacto no direito penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.
- PALLAMOLLA, Raffaella da Porciuncula. Justiça restaurativa: da teoria à prática. São Paulo: IBCCRIM, 2009. p. (Monografias, 52).
- PRANIS, Kay. Processos Circulares. Tradução de Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2012.
- RAMIDOFF, Mario Luiz. Sinase - Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo - Comentários À Lei N. 12.594, de 18 de janeiro de 2012. São Paulo: Saraiva, 2012.
- ROLIM, Marcos. A Síndrome da Rainha Vermelha: Policiamento e segurança pública no século XXI. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 2006.
- ROSA, Alexandre Morais da. Introdução Crítica ao Ato Infracional - Princípios e Garantias Constitucionais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
- SABADELL, Ana Lúcia. Manual de Sociologia Jurídica: Introdução a uma Leitura Externa do Direito. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
- SALIBA, Marcelo Gonçalves. Justiça Restaurativa e Paradigma Punitivo. Curitiba: Juruá, 2009.
- SANTANA, Selma Pereira de. Justiça Restaurativa: A Reparação como Conseqüência Jurídico-Penal Autônoma do Delito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
- SANTOS, Juarez Cirino dos. A Criminologia Radical. 2. ed. Curitiba: Lumen Juris/ICPC, 2006.
- SCURO NETO, Pedro. Sociologia Geral e Jurídica : introdução à lógica jurídica, instituições do Direito, evolução e controle social. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
- SHECAIRA, Sérgio Salomão; Sá, Alvino Augusto de (orgs.). Criminologia e os Problemas da Atualidade. São Paulo: Atlas, 2008.
- SICA, Leonardo. Justiça Restaurativa e Mediação Penal - O Novo Modelo de Justiça Criminal e de Gestão do Crime. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
- SLAKMON, Catherine; MACHADO, Maíra Rocha; BOTTINI, Pierpaolo Cruz (Orgs.). Novas direções na governança da justiça e da segurança. Brasília-DF: Ministério da Justiça, 2006.
- SLAKMON, Catherine; VITTO, Renato Campos Pinto De; PINTO, Renato Sócrates Gomes (org.). Justiça Restaurativa: Coletânea de artigos. Brasília: Ministério da Justiça e PNUD, 2005.
- SÁ, Alvino Augusto de. Criminologia Clínica e Psicologia Criminal. prefácio Carlos Vico Manãs. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
- SÁ, Alvino Augusto de; SHECAIRA, Sérgio Salomão (Orgs.). Criminologia e os Problemas da Atualidade. São Paulo: Atlas, 2008.
- VASCONCELOS, Carlos Eduardo de. Mediação de conflitos e práticas restaurativas. São Paulo: Método, 2008.
- VEZZULLA, Juan Carlos. A Mediação de Conflitos com Adolescentes Autores de Ato Infracional. Florianópolis: Habitus, 2006.
- WUNDERLICH, Alexandre; CARVALHO, Salo (org.). Novos Diálogos sobre os Juizados Especiais Criminais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.
- WUNDERLICH, Alexandre; CARVALHO, Salo de. Dialogos sobre a Justiça Dialogal: Teses e Antiteses do Processo de Informalização. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002.
- ZEHR, Howard. Justiça Restaurativa. Tradução de Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2012.
- ZEHR, Howard. Trocando as lentes: um novo foco sobre o crime e a justiça. Tradução de Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2008.
Nenhum comentário:
Postar um comentário