Caxias do Sul – Em um ano, quase 1,8 mil pessoas driblaram orgulho e medo para resolver conflitos, antigas mágoas e desavenças. Improváveis em outros tempos, esses encontros ocorreram sob a supervisão de profissionais das três centrais do Núcleo de Justiça Restaurativa de Caxias do Sul. Isso só foi possível porque houve gente disposta a perdoar e reparar erros, avanços importantes para uma cidade marcada por relações conturbadas.
Desde a inauguração do Núcleo, em novembro de 2012, as centrais jogaram luz sobre 233 casos de agressões, ameaças, roubos, brigas por herança, dívidas e outras situações envolvendo adultos, adolescentes e crianças de diversos bairros e classes sociais. Problemas que se arrastavam havia anos dentro de lares, em comunidades ou no Fórum, sem perspectiva de solução. Os resultados até agora mostram que a violência não se vence apenas com punição, mas também por meio do consenso.
A receita parece simples. Basta reunir alguém que praticou a ofensa ou violência de menor potencial ofensivo em uma mesma sala com a vítima para que ambos possam expressar sentimentos. Esse processo é chamado de Círculo da Construção da Paz, e o objetivo final é estimular o autor a reparar o dano.
Contudo, a abordagem requer esforços e ações específicas, o que imprime complexidade à tarefa. Afinal, poucos são corajosos a ponto de assumir falhas. Igualmente difícil é superar o rancor e o orgulho. Quem transpõe essas barreiras se sente recompensado, vitorioso.
As três ramificações do Núcleo atuam com diferentes segmentos de Caxias. A Central Judicial de Pacificação Restaurativa, aberta no Fórum, lida com casos litigiosos. A Central de Práticas Restaurativas da Infância e da Juventude atende na UCS e prioriza conflitos em escolas. A Central Comunitária de Práticas Restaurativas trabalha com moradores da Zona Norte. Juntos, os serviços favorecem acordos extrajudiciais ou abreviam trâmites na Justiça. A diferença é que os procedimentos não exigem a participação de um juiz, promotor ou advogado como nos processos tradicionais. Crimes hediondos, porém, continuam tratados pelos métodos convencionais.
Faltava uma casa – Uma das vantagens é tratar diferentes situações. Um exemplo aconteceu no bairro Diamantino. A vida do capoeirista Jean Batista Teixeira Santos, 58 anos, estava desmoronando. Os quatro filhos e três enteados enfrentavam dificuldades de relacionamento e aprendizado na escola, não havia comida para alimentar a garotada e o salário do trabalhador era e ainda é insuficiente para pagar contas básicas. Ainda assim, ele encarava a rotina com um certo otimismo.
Mas um dia a situação beirou o insuportável. Sem energia elétrica na moradia, o chuveiro, a geladeira e a única TV se tornaram inúteis. A família ficou semanas às escuras. O reflexo foi previsível: o desconforto em casa deixou a criançada agitada. Eles brigavam com os colegas na escola e não correspondiam à expectativa dos professores. Logo, a culpa recaiu sobre Jean, que aparentemente estaria sendo um chefe de família negligente e poderia ser responsabilizado judicialmente.
Mas o caso acabou encaminhado para a Central de Práticas Restaurativas da Infância e da Juventude, na UCS. Jean teve oportunidade de relatar o que estava acontecendo.
– Percebemos que a origem dos problemas passava pela estrutura da casa. A moradia era precária, estava pendendo de um barranco e não havia condições de ficar ali. Descobrimos que o local havia sido interditado há anos pelos bombeiros. Tudo isso gerava as outras situações – relata a coordenadora da Central, Katiane Boschetti da Silveira.
Mobilização – Os facilitadores convocaram representantes das escolas, funcionários do posto de saúde, da Secretaria Municipal da Habitação e da Assistência Social, entre outros. Formou-se um grande círculo e se buscou as soluções. O município, por exemplo, já havia doado a madeira para a construção de uma nova casa para a família, mas faltava mão-de-obra. As irmãs do Imaculado Coração de Maria assumiram a contratação de pedreiros e carpinteiros e a aquisição do restante do material. Jean, por sua vez, se comprometeu a manter filhos e enteados na escola e dar-lhes mais atenção. As crianças se tornaram menos agitadas e apresentaram avanço na performance escolar. Um novo círculo está programado para reunir o capoeirista e a família. Desta vez, a ideia é prepará-los para a casa nova. Jean absorve os compromissos e as mudanças com serenidade.
– Abriu portas e me deu um fôlego – resume.
Desfechos positivos como o do capoeirista surpreendem os defensores das práticas restaurativas. Mas todos reconhecem que há muito trabalho pela frente. Tanto que os profissionais das centrais, policiais militares e guardas municipais participam até a próxima semana de novas capacitações.
Para marcar o primeiro ano, o Núcleo lançará uma publicação sobre a implantação da Justiça Restaurativa em Caxias. O material produzido pela jornalista Caroline Pierosan trará relatos de transformação social e pessoal a partir do projeto.
Algumas dessas histórias estão reproduzidas nas próximas páginas desta reportagem. SEGUE
adriano.duarte@pioneiro.com
ADRIANO DUARTEPioneiro. 23/11/2013 | N° 11850
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