Tiro separa famílias
“O que teria sido apenas uma brincadeira virou estampido, sangue e tragédia. Fascinado por um revólver que lhe caiu nas mãos, o adolescente encostou o cano da arma no rosto do amigo e desafiou: ‘E agora...?’ A arma disparou. A bala atravessou o rosto do colega e se alojou próxima à têmpora, de onde não pôde ser retirada.
As lembranças trazem mais do que dores de cabeça para a vítima: doem no coração dos jovens e das suas famílias. Embora vizinhos, ninguém se falou mais. Judicialmente responsabilizado pela tentativa de homicídio culposo, o ofensor cumpriu medida em liberdade. Incentivado por sua orientadora a refletir sobre as consequências do seu ato, aceitou ouvir o relato de quem teve que senti-las na carne.
O caso foi então encaminhado para a Central Judicial de Pacificação Restaurativa. Relutante, mas incentivado pela família, a vítima também se dispôs ao encontro. Um Círculo de Construção de Paz foi realizado com a presença dos jovens e suas famílias. Num ambiente seguro e protegido, a família do ofensor contou que se afastara porque tinha medo de retaliação e sentia vergonha da tragédia causada por seu filho. A família da vítima disse que, em meio à dor e à raiva, muitas vezes chegou a duvidar que o tiro tivesse sido acidental. O jovem baleado pôde expressar o peso de suportar uma dor quase permanente: as fisgadas da bala ainda metida em sua cabeça.
Essas revelações reabriram os canais, promoveram empatia, restauraram os laços de amizade e a compreensão de que o evento fora acidental. Um perante o outro, ambos os jovens admitiram que naquela época faziam coisas arriscadas e reconheceram que o acidente fez parte de um modo de vida que haviam modificado desde então. Ao término de algumas horas de encontro os jovens e suas famílias se abraçaram, aliviados. A bala nunca pode ser removida. Mas a muralha de rancor e desconfiança entre as famílias não existe mais.”
Ressarcimento
“Ameaçados por dois rapazes armados de revólver, dois empregados de um restaurante não tiveram opção senão entregar o malote no qual transportavam 15 mil reais para serem depositados no banco. As investigações apontaram quatro infratores, três deles menores (dois já tinham trabalhado no restaurante, um deles, ainda era empregado no local). A vítima e todas as testemunhas haviam sido ouvidas, e o processo estava pronto para julgamento. Pela gravidade, o fato justificaria o Juizado da Infância e Juventude internar os três adolescentes no Case. A vítima, porém, insistia na devolução do dinheiro. Tanto os jovens como suas famílias, bastante envergonhadas, se propunham a restituir o valor.
O processo foi suspenso e um círculo com a presença da vítima resultou em acordo. Os jovens cumpririam as medidas de liberdade assistida, prestação de serviços à comunidade e, à titulo de reparação dos danos, cada um devolveria R$ 2.750 à vítima. Foi combinado que os pagamentos seriam feitos com o próprio trabalho dos jovens. Por isso, durante meses, eles tiveram de comparecer pessoalmente para pagar suas prestações no mesmo restaurante que haviam assaltado.
Os acordos foram cumpridos, a sentença nunca foi prolatada e foram poupadas três vagas no Case. Os três jovens se reorganizaram e, até então, não se envolveram mais em delitos. Todos experimentaram um processo de responsabilização e amadurecimento cujos resultados provavelmente seriam muito diferentes caso tivessem ficado um ou dois anos presos. Num contato recente com o facilitador, a vítima avaliou positivamente o resultado. Inclusive, lamentou não ter conseguido reaver a parte do dinheiro por parte do outro jovem envolvido que, por ser maior de idade, não teve seu caso encaminhado à Justiça Restaurativa.”
Doze anos de punição
“Uma funcionária estava proibida de frequentar a cozinha da Escola. Ela fora acusada de abrir a válvula do gás para incriminar uma colega. O fato tinha ocorrido há 12 anos, mas a proibição se mantinha. Desde aquela época ela nunca mais tinha entrado na cozinha.
Tudo estava registrado em Ata. Um Círculo de Construção de Paz foi realizado com a equipe daquele colégio. Foi um Círculo com muitos desafios e desfechos, mas, no final, tivemos um bom resultado. Hoje a funcionária tem acesso à cozinha, apenas com restrições iguais às de todos os demais funcionários.
Por detrás da história, o circulo revelou um poço com 12 anos de mágoas acumuladas. Há 12 anos a merendeira fora trocada de função e colocada para cuidar das crianças no pátio da escola. Pouco tempo depois, um vazamento de gás na cozinha alvoroçou toda o colégio.
Suspeita de sabotagem e mesmo sem ter sido formalmente julgada, a ex-merendeira acabou condenada a 12 anos de ressentimentos e estigmatização. Presumida culpada, a situação gerou sentimentos de exclusão e muita raiva contra a colega, que passou a ocupar o lugar no qual ela nunca mais pode entrar, sequer para aquecer sua refeição.
Sentimentos que persistiam e infectavam o ambiente escolar, até serem tratados através de uma prática restaurativa.”
A verdade jogada pela janela
“A avó reclamava que não conseguia mais lidar com ele. Queria livrar-se do “demônio” (como ela o chamava). O neto não lhe dava mais sossego. Na falta de outro familiar que o recebesse, o destino do menino seria o acolhimento institucional.
Antes, porém, o Ministério Público encaminhou o caso para a Central de Práticas Restaurativas da Infância e da Juventude. No Círculo de Construção de Paz, o garoto revelou a raiz da sua perturbação. Segundo lhe contara a avó paterna, pela qual fora criado desde bebê, ele não teria sido apenas abandonado pela mãe, mas, com apenas 11 meses de vida, fora por ela jogado para fora da janela de um carro em movimento.
De fato, nessa ocasião a família se envolvera em um acidente de trânsito, quando o pai do menino dirigia embriagado. O veículo capotou. O casal e a criança se feriram e foram hospitalizados. Ainda no hospital, as famílias se desentenderam. O bebê teve alta antes dos genitores, e a avó paterna o assumiu.
Desde então, não permitiu que a mãe visse o filho. Quinze anos se passaram sem que mãe e filho se falassem. No Círculo, a mãe revelou ter mentido à polícia para proteger o companheiro das consequências legais do crime de dirigir embriagado. Não era verdade que tivesse jogado o menino pela janela do carro.
O menino perdoou a mãe, e reatou os laços com ela. Hoje, eles moram juntos. O menino frequenta a escola e estabilizou seu comportamento. Mantém um ótimo relacionamento com a mãe e o padrasto. O garoto voltou a ser tranquilo na escola e mantém-se em dia com os estudos. No encontro de Pós-círculo, disse estar se sentindo muito feliz. O ‘demônio’ da família foi exorcizado.”
Herança imerecida
“Um homem morreu e deixou a esposa de 29 anos sozinha para criar duas filhas, de oito e 10 anos. A mulher decidiu cobrar a herança que acreditava merecer: a casa onde o sogro morava. O senhor, de 76 anos não tinha para onde ir. Assim começou a discórdia que separou as duas netas do avô.
A mulher insistia que tinha direito à casa, e o idoso afirmava que não tinha condições de deixar o lar. Dois anos depois da morte do filho, ele acabou perdendo também a esposa.
A partir disso, longe das netas e sem a companheira, o idoso passou a viver uma situação de grande sofrimento. A nora insistia que não abriria mão do que era seu. O conflito foi levado à equipe da Central de Práticas Restaurativas, que propôs a realização de Círculos de Construção de Paz com a família.
Durante a realização dos Círculos, descobriu-se que a casa onde o idoso habitava não lhe pertencia totalmente. A posse do imóvel era dividida entre ele e outros três irmãos. Depois de compreender que afinal, não tinha direito ao bem, e que, mesmo que tivesse, receberia apenas uma pequena parte, a nora desistiu da briga.
Avô e netas puderam voltar a conviver. Os Círculos de Construção de Paz possibilitaram que os laços da família fossem restabelecidos.”
O peso da culpa
“Um menino de 12 anos e seu irmão andavam de bicicleta por uma das ruas do bairro Monte Carmelo, onde moram com a família. Na mesma ocasião, um senhor idoso caminhava pela mesma via. Ao colidirem as bicicletas, os irmãos perderam o controle dos veículos. O menino, sem conseguir desviar, acabou atropelando o idoso. O garoto se tornou réu em um processo de homicídio culposo.
O menino, que antes sempre fora um bom aluno, agora não conseguia mais acompanhar as aulas na escola. Acabou reprovado. A culpa pela morte do idoso fazia com que tivesse medo da polícia. A mãe, não fazia mais compras no mercado do bairro, onde a filha da vítima trabalhava. As famílias, que eram vizinhas há muitos anos, deixaram de se falar.
O caso foi encaminhado para a Central Judicial de Práticas Restaurativas. Um Círculo de Construção de Paz foi realizado entre as duas famílias. Nesta conversa, a filha do idoso contou que enquanto o pai estava no hospital os médicos lhe informaram que a saúde dele já estava muito debilitada – tinham descoberto um fungo em seu pulmão. Se o idoso não tivesse sido hospitalizado (por causa do acidente), provavelmente teria transmitido a doença para outras pessoas.
A filha do senhor idoso declarou no Círculo, que perdoava o menino pela morte do pai, e que, para ela, não existiam culpados nesta situação. Ela pediu que ele voltasse a frequentar a sua casa. No fim, a família do menino foi embora de carona com a filha do senhor. O processo foi arquivado sem nenhuma sanção para o menino. O garoto retomou seu bom desempenho escolar. As famílias voltaram a conviver.”
Um dos expoentes da Justiça Restaurativa, o belga Jean Schmitz está em Caxias do Sul treinando profissionais que trabalham na mediação de conflitos. Schmitz e a maranhense Ilvaneide Carvalho compartilham experiências para solidificar a atuação dos três núcleos de Justiça Restaurativa na cidade.
Pioneiro: Um dos módulos do curso fala sobre reuniões restaurativas. Do que se trata?
Jean Schmitz: as reuniões restaurativas são organizadas quando se tem uma situação de conflito. O encontro é entre o ofensor, a vítima, pessoas de apoio e a comunidade. É para entender o que se passou, para que as partes possam se expressar. Ao final, se busca soluções para resolver os conflitos. É encontro voluntário. É uma prática que precisa de preparação e planejamento.
Pioneiro: Por que a Justiça Restaurativa é tão incompreendida?
Ilvaneide Carvalho: Desde que o mundo é mundo, as pessoas querem que alguém pague pelo que se fez, sem se importar se alguém poderia ser recompensado ou reparado. Se eu te bati, tu vai querer me bater, mas ninguém quer saber porque eu te agredi. Na Justiça Restaurativa se tenta entender o que aconteceu anteriormente para explicar o que levou a gente a entrar em conflito. É a desconstrução de algo construído há muito tempo.
Pioneiro: Policiais militares e guardas municipais estão sendo capacitados. Qual é o papel deles?
Ilvaneide: a Guarda tem um trabalho dentro da escola em Caxias. Estão sendo capacitados para que possam trabalhar com a prevenção no âmbito escolar. Tem também a ideia de desmistificar o militarismo.
Pioneiro: Quais experiências em outros países podem ser aproveitadas no Brasil?
Schmitz: No Peru, temos um projeto-piloto dentro de uma delegacia. Uma policial foi capacitada para dar atenção, ouvir e deixar a vítima se expressar, o que não é comum nessas repartições. Com isso, começamos a ter muito mais pessoas fazendo denúncias, porque antes não confiavam na polícia.
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