Conheces os navios que levam petróleo e livros, carne e algodão.
Viste as diferentes cores dos homens,
as diferentes dores dos homens,
sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso
num só peito de homem… sem que ele estale”
– Carlos Drummond de Andrade, “Mundo Grande”
Certa vez, Kay Pranis, autora norte-americana pensadora da Justiça Restaurativa (JR), falava sobre como iniciou seu contato com a pauta. Ela contava que tudo começou ao ler um trabalho de Kay Harris, professora de Direito na Filadélfia, sobre uma visão feminista da justiça. O paper tinha início e fim sem mencionar uma única vez a palavra “restorative”. Seu conteúdo estava alinhado com princípios e valores que pareciam refletir o que Pranis acreditava quanto a justiça e punição. Aquilo a inquietou, Pranis procurou ir a fundo nas discussões. No caminho, encontrou a JR.
O texto de Harris estalou no coração de Pranis. De uma Kay a outra, de uma mulher a outra, a justiça ganhou movimento.
É certo que “Moving into the New Millenium: Toward a Feminist Vision of Justice“, texto de Harris disponível na internet, não trata expressamente de JR. Ao apresentar uma visão feminista da justiça, contudo, alinha-se profundamente aos valores e princípios da JR. Afinal, inclusão de alteridade negada e igual dignidade entre os seres são elementos caros não só ao feminismo, como também à JR.
O próprio senso de justeza resta prejudicado diante da supremacia de um ser sobre outro. A humanidade, por sua vez, é inteiramente violada a cada vez que uma criatura humana tem sua dignidade vulnerada. Sim, sofremos todas quando uma de nós sofre. E, ainda que nem sempre nos demos conta, sofremos todos quando um ou uma de nós sofre.
Lembramos do que afirmou uma outra mulher, Rita Segato, em Antropologia e direitos humanos: alteridade e ética no movimento de expansão dos direitos universais, ao defender que o fundamento dos direitos humanos não é outro senão uma ética de insatisfação em direção ao bem ainda não alcançado.
Dito isso, agora pensemos na situação oposta: é possível o alinhamento da JR a uma concepção machista ou mesmo femista? Indo além: é possível uma justiça restaurativa que não seja feminista?
FOTO: TONY RIBEIRO/ TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO MATO GROSSO.
Caso Emily
Este questionamento surgiu para nós quando, na sala de aula da EMU, diante da apresentação de um estudo de caso, perguntou-se porquê Emily, uma mulher envolvida no conflito narrado, não participou da conferência vítima – agressor. Recebemos a justificativa de que, a despeito de ser uma das vítimas do caso, ela era menor de idade e seu avô decidiu que ela não participaria.
Insistimos e perguntamos se ela havia sido ouvida a respeito e recebemos a resposta que não. Um “não” que naturalizou o seu silenciamento. Emily não só não teve a oportunidade de expressar quanto ao fato em si, como também não pode dizer como se sentia a respeito de sua exclusão do procedimento.
A justificativa estrutural de que o seu avô tinha poder familiar sobre ela e de que os facilitadores não tinham poder para se sobreporem à sua decisão foi aceita e entendida por nós, contudo, ficamos a nos questionar sobre o que foi escondido em razão da sua ausência. Mais. Estalou no nosso peito a dúvida sobre como contribuir para que a Justiça Restaurativa e a Sororidade caminhem entrelaçadas nas práticas da Construção de Paz.
Tratar as questões das desigualdades e entre elas as questões de gênero é um valor essencial tanto à JR quanto à Sororidade. Ambas concordam com Paul Ricceur quando este adverte que
“não devemos nos enganar quanto à intenção da violência, o alvo que ela busca alcançar implícita ou explicitamente, direta ou indiretamente, é a morte do outro – pelo menos sua morte ou algo pior que sua morte”. (Historie et vérité [História e verdade], Paris: Le Seuil, 1955, p.227).
Também se mantém alertas às palavras de Jean Marie Muller quando adverte que
“do insulto à humilhação, da tortura ao homicídio, múltiplas são as formas de violência e múltiplas são as formas de morte. Atentar contra a dignidade do homem é o mesmo que atentar contra sua vida. Usar de violência é sempre obrigar o outro a calar-se, e privar o homem de sua palavra já é privá-lo da sua vida” (O princípio da não-violência: uma trajetória filosófica, tradução de Inês Polegato, São Paulo: Palas Athena, 2007, p. 30.).
As práticas restaurativas, portanto, jamais devem trazer em si a violência do silenciamento. Milita contra a sua essência abortar a fala de quem esteja envolvido em um conflito, ainda que se perceba que o interlocutor se encontra em looping no ciclo da vitimização ou que as superestruturas apresentem formas de excluir sua participação.
A compreensão acerca do tempo de cada um para alcançar a consciência do trauma, transcendência e transformação do conflito e conquistar resiliência é uma ação sorora e dialógica que afasta a minimização da dor alheia e impede a ocupação indevida do lugar de fala do outro.
Tendo a Imaginação Moral como arte e alma da construção da paz, a partir da perspectiva de Jonh Paul Lederach, a JR demanda a criatividade de encontrar caminhos respeitosos que não negligenciem os silenciamentos estruturais fomentadores das desigualdades.
E segundo David Bohm, ainda, que possibilitem a criação de espaços seguros de encontros e de fala onde sejam suspensas ideias e pressupostos para serem apreciados até a formação de uma consciência coletiva, e as necessidades absolutas, entendidas como o que não pode ser deixado de lado, colidam entre si até que se alcance a liberdade que possibilita uma percepção criadora de novas ordens de necessidades.
Este amontoar de saberes revolucionários nos fez enxergar a dor de Emily como a nossa dor e a nossa amarra, o que nos aproximou e nos fez pontuar, com Audre Lorde, naquele espaço de estudo sobre construção de paz, que não seremos livres enquanto alguma mulher for prisioneira, mesmo que as correntes dela sejam diferentes das nossas.
Se não tivemos a chance de ouvir o que a verdadeira Emily tinha a dizer, nem por isso decidimos silenciar as vozes da Emily que carregamos conosco. Sem nos preocuparmos se correspondiam necessariamente às percepções originais, buscamos expressar algumas das impressões possíveis e das nossas insatisfações quanto ao bem que ainda não alcançamos.
Propiciamos a Emily, por meio de uma carta ficcional, uma voz restaurativa e então todos experimentamos uma nova ordem de necessidades: aquela em que os nossos professores de forma sorora nos pediram a permissão para incluir a carta de Emily nas próximas formações, para depositá-la nas caixas de correspondências de todos que desejam trilhar o caminho da construção da paz.
CAIXAS DE CORRESPONDÊNCIAS DA EMU- EASTERN MENNONITE UNIVERSITY. FOTO TIRADA POR JANINE FERRAZ.
Carta de Emily
Brasil, 28 de Maio de 2019.
Queridos facilitadores de JR,
Estou muito feliz por tê-los conhecido neste momento tão difícil da minha vida. Como sabem, estou vivenciando uma crise traumática pela qual sinto-me, inclusive, culpada e responsável.
Está sendo muito importante para mim saber que meu avô, a dona Janete, o Tim e a Cris estão tendo a oportunidade de falarem e serem ouvidos sobre tudo o que aconteceu. Fico muito feliz por eles terem encontrado um espaço seguro, confidencial, respeitoso e facilitado por vocês que prezam e primam por incentivarem a participação completa e o consenso, dando voz àqueles envolvidos e afetados por um determinado evento danoso, convocando-os ao diálogo, quando apropriado. Certamente, eles estão se sentindo incluídos, pertencentes e considerados em seus lugares de fala, além de acolhidos. Isso é incrível.
Entendi também que vocês estão fazendo um admirado trabalho para curar o que eu contribuí para quebrar. Vocês estão me dando um grande alívio ao abordarem os danos – tangíveis e intangíveis – resultantes do fato de eu ter dito ao Tim que meus avós iriam viajar, mesmo estando consciente que ele estava enfrentando dificuldades com as drogas.
Vocês devem imaginar como vejo e revejo esta minha ação como um filme em replays infinitos, numa agonia para mudar o passado e sem qualquer poder para isso.
Sinto-me como me ensinaram sobre Eva. Compartilho com ela aquela culpa de ter influenciado Adão a cometer o pecado. Ensinaram-se que se ele fez, foi por influência minha. É muito difícil para mim, tendo sido criada com o ensinamento desta culpa feminina, acreditar que os atos do Tim são responsabilidade dele e não minha falha. Afinal, desde o início todos me questionam “por que raios fui dizer a ele que não havia ninguém em casa?!”
No meu mundo, as mulheres são culpadas por não terem ensinado bem seus meninos, deixando-os sempre à mercê de uma mulher má que irá desviá-los do caminho certo. E isso me causa muita confusão.
Seria muito importante para mim que os atos do Tim e suas consequências ficassem na conta dele e não na minha. Mas sei que é difícil. Afinal, se até eu me questiono, como posso pedir que os outros não o façam?!
Soube que o trabalho de vocês visa reintegrar onde houve confusão. Nossa! Como isso é importante! E esse ponto me fez lembrar da dona Janete. Se eu estivesse com vocês, eu gostaria muito de poder apoiá-la. Sabe, eu a vejo, mas muitas pessoas na nossa comunidade não a enxergam. Parece que usam as lentes que focam apenas em sua depressão e em uma falência decorrente da perda do Tim para as drogas. Eu me sinto triste por não poder dizer a ela para também não se sentir culpada pela dependência química dele. Ele não é um insucesso dela. Ela sempre foi presente, esteve ao lado dele, deu cuidado, proveu. A ausência que consome a alma dele, não foi a dela. Eu me sentiria reconfortada se pudesse confortá-la, se pudesse ser sorora com ela. A nossa convivência me faz falta. Em muitos momentos, do jeito dela, mesmo deprimida, ela cuidou de mim.
Concordo com a explicação que me deram que é restaurativo olhar para o futuro e se fazer a pergunta: “o que precisa acontecer para reduzir a chance de as pessoas serem prejudicadas novamente?”
Isso me faz pensar no meu avô, que ficou muito preocupado comigo e se entristeceu pela dúvida que levantaram sobre mim. Para ele foi muito importante ter visto o Tim esclarecer que eu não fui responsável e não participei da ação que causou dano a tantas pessoas. Eu já tinha dito isso. Mas, na nossa realidade, a palavra dele é necessária e decisiva para o estabelecimento da verdade. Que bom que ele falou! Tenho esperança que agora meu avô possa voltar a erguer a cabeça, livre de qualquer preocupação sobre comportamentos meus que ele entenda danosos. Eu amo meu avô! Tive medo de perdê-lo. Para mim, é importante que ele saiba disso.
Eu compreendo que meu avô tem o poder de decidir por mim e respeito a sua decisão de não permitir que eu participasse do processo. Ele entendeu que está me protegendo da presença danosa de Tim.
Só lamento não ter sido consultada. Eu entendo que também fui vítima e que a minha opinião tornaria o processo mais legítimo. Ter sido silenciada pelo meu avô me provoca o desejo de afastar-me, afinal meus pensamentos sobre a minha história foram ignorados em nome da hierarquia e do poder familiar. Gostaria de saber se isso não é uma questão para vocês. Estou prolongando a minha permanência no ciclo de vitimização pensando assim? Este esclarecimento é importante para mim.
Quanto ao Tim, acredito que não nos será mais permitido nos vermos. Como não posso falar sobre isso, por não ter sido construído um espaço que me incluísse, vou guardar numa caixa meus sentimentos até que eles morram por sufocamento. Nós mulheres aprendemos sobre como sufocar os nossos sentimentos desde sempre.
Com esta carta, desejo que saibam que tudo o que estão fazendo é incrível, e que a recebam como um sinal de confiança na capacidade que tem de encontrar meios de tornar a Justiça Restaurativa mais inclusiva, transcendente ao debate e, ao mesmo tempo, sensível às estruturas que não me permitiram estar dialogando com todos vocês. Com amor e esperança!
Emily
É Juíza de Direito do TJ/BA e membra da AJD (Associação Juízes para a Democracia). É cristã. Pacificadora. Acredita na humanidade. Tem passado por aprendizados revolucionários após conhecer pessoas revolucionárias. Compõe a coluna “Sororidade em Pauta” em conjunto com magistradas que são “alguéns para a vida inteira”.
É professora e facilitadora de práticas restaurativas. É doutora em Direito pela UFMG, com pesquisa em Justiça Restaurativa de base comunitária. Foi acompanhante ecumênica na Palestina e em Israel e, desde então, acredita no poder transformador de descobrir-se nos olhos do outro, “outramente”.
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