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19 de mar. de 2013

Para além do crime e da punição


Por: Daniel Fassa
Preces para começar, ceia para concluir. Em um processo mediado por membros da comunidade especialmente designados para o caso, ofensor, vítima e suas respectivas famílias se reuniam para falar francamente sobre o incidente. O primeiro reconhecia o erro cometido e pedia perdão. Os últimos, exprimiam a dor pelo mal sofrido e tinham a oportunidade de perdoar. Ao final do encontro, os mediadores determinavam um programa de reabilitação para o ofensor e alguma forma de restituição e suporte para as vítimas. Mais importante que estabelecer punições era reconstituir o tecido social ali onde ele tivesse sido rompido.
O ritual acima descrito é fruto da tradição milenar de tribos ainda hoje presentes no Canadá e na Nova Zelândia. Reivindicando o direito de fazer justiça segundo sua própria cultura, durante as décadas de 1970 e 1980, essas minorias étnicas acabaram influenciando permanentemente o sistema judiciário desses países. Hoje, o método se difundiu em muitas outras nações e ficou conhecido no mundo todo como justiça restaurativa.
Em linhas gerais, a justiça restaurativa consiste em buscar a reparação do dano causado pelo comportamento criminoso a partir do encontro voluntário das partes envolvidas, de modo a transformar as pessoas, as relações e as comunidades. Estudos indicam que entre os resultados de tal abordagem estão a diminuição das taxas de reincidência no crime, a redução do estresse pós-traumático e do desejo de vingança das vítimas, e a queda dos custos do sistema penal.
No Brasil, experiências nesse sentido vêm sendo feitas desde 2005. Interessados em encontrar mecanismos efetivos para a resolução de conflitos, que nem sempre cessavam com as sentenças judiciais, juízes brasileiros foram conhecer o trabalho inovador realizado na Nova Zelândia. Voltaram convencidos a adotar o sistema.
Dessa forma, nasceram projetos-piloto nos Tribunais de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS), de São Paulo (TJSP) e do Distrito Federal (TJDFT). Os dois primeiros voltaram-se para o trabalho com menores, enquanto o último desenvolveu um programa para adultos que cometeram crimes de menor poder ofensivo. Desde então, também foram desenvolvidos programas em tribunais de Santa Catarina, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Goiás, Bahia e Pará.
De acordo com a coordenação do Programa Justiça Restaurativa rea­lizado pelo Juizado Especial Cível e Criminal do Núcleo Bandeirante do TJDFT, a ideia é estabelecer uma comunicação não-violenta entre vítima e ofensor (que deve ter previamente reconhecido sua responsabilidade pelo delito e estar disposto a repará-lo). Em ambiente protegido e amparados pelas respectivas famílias, comunidades, conselheiros religiosos etc., eles dialogam sobre os motivos do conflito/crime, seus sentimentos e suas necessidades. Ao final, é encaminhado um acordo para o juiz que, caso concorde, realiza a homologação. Quando não se chega a um entendimento entre as partes, retomam-se as vias tradicionais.
Segundo o juiz Egberto Penido, que desenvolve um trabalho de justiça restaurativa voltado a adolescentes na 1a Vara do Brás, na capital paulista, ainda existe muita desconfiança em relação ao método, porque acredita-se que ele estimule a impunidade. No entanto, ele afirma que “a justiça restaurativa muitas vezes é até mais dura que o sistema punitivo”, porque leva a uma “efetiva mudança de comportamento, a uma efetiva responsabilização dos envolvidos”. Segundo ele, “entrar em contato com as consequências dos seus atos tem uma potência transformadora muito grande. Muito dificilmente isso acontece no sistema tradicional”.
Isso não significa que as prisões deixarão de existir. É o que argumentam os magistrados Asiel Henrique de Sousa e Léa Martins Sales Ciarlini, coordenadores do Programa Justiça Restaurativa do TJDFT. Eles afirmam que a abordagem restaurativa não visa a substituir o modelo punitivo na sua integralidade, mas sim, “resolver alguns conflitos, mesmo que tipificados como crimes, sem a necessidade de prisão; resignificar as condutas e as relações interpessoais em outros casos; valorizar as vítimas de crimes em outros; promover a reinserção dos réus em outros”.

Ninguém é irrecuperável
O mesmo espírito comunitário que caracteriza o sistema de justiça restaurativa marca o surgimento, também na década de 1970, de iniciativas voltadas aos encarcerados. Nesse caso, o cenário é constituído por Brasil e Estados Unidos e os fundamentos remontam à cultura cristã. Os personagens são dois homens que viveram a questão de perspectivas diferentes, mas que, com igual intensidade, perceberam a urgência de garantir a dignidade daqueles que passam anos atrás das grades.
Em 1972, o advogado Mario Ottoboni juntou-se a um grupo de amigos de sua paróquia para visitar o presídio Humaitá, em São José dos Campos (SP), e dar apoio moral e espiritual aos presos. Após dois anos de convivência com aquela dura realidade, decidiram fundar a Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (Apac), entidade sem fins lucrativos que constrói e administra, em parceria com o Governo, Centros de Reintegração Social. Neles se empregam métodos de ressocialização baseados na participação voluntária da comunidade do entorno, no estudo, no trabalho, na ajuda recíproca entre os detentos e na formação espiritual. Hoje há 147 unidades distribuídas em 17 estados do Brasil. O projeto, que também está presente em outros 22 países, é coordenado pela Fraternidade Brasileira de Assistência ao Condenado (FBAC).
Com metas semelhantes, o norte-americano Charles W. Colson fundou a Prison Fellowship em 1976, logo após sair da prisão. Ex-conselheiro-chefe do presidente Richard Nixon, ele cumpriu pena pelo envolvimento no escândalo político que ficou conhecido como Watergate. Durante o período de encarceramento, Colson converteu-se ao cristianismo e decidiu que se dedicaria à reabilitação de prisioneiros. Três anos depois, organizações análogas atuantes em outros países reuniram-se à Prison Fellowship para fundar a Prison Fellowship International (PFI).
Hoje, a instituição presta consultoria à Organização das Nações Unidas e atua em mais de cem países, difundindo conhecimentos sobre a justiça restaurativa e métodos de reabilitação de detentos. Entre os trabalhos recomendados no site da PFI, estão as Apacs, citadas como exemplo pioneiro das chamadas Communities of restoration (Comunidades de Restauração).
Daiane Chaves, que foi voluntária de uma unidade da Apac quando era estudante de Direito, conta que justiça e misericórdia caminham de mãos dadas na instituição: “Os homens e mulheres que cumprem pena privativa de liberdade são rotulados como irrecuperáveis e fracassados, mas dentro da Apac descobrem que esse postulado é uma grande falácia e que eles podem superar o histórico de crimes que escreveram, basta querer”.
Mestre em ciências jurídico-criminais, ela conta que seu conceito de justiça foi aprimorado depois do voluntariado. “Quando o recuperando recebe apoio do Estado, da sociedade, da sua família, ele inevitavelmente altera o primeiro e mais importante sentimento de justiça: a justiça dele para consigo mesmo. Os recuperandos da Apac saem da zona de vítimas e passam a ser autores de suas próprias vidas, sem ressentimentos, sem remorsos e sem desculpas. É lindo ver que eles estão sendo justos consigo mesmos e, mais ainda, saber que construíram isso com o apoio de dezenas de pessoas. Porque são seres humanos, podem ser melhores, sempre”, garante a jovem advogada.

PPP: Uma alternativa?
Não é de hoje que os presídios privados são uma realidade presente no Brasil. Mas neste ano eles voltaram com força ao debate público, devido à inauguração, no estado de Minas Gerais, do primeiro complexo penitenciário totalmente construído e administrado por meio de Parceria Público-Privada (PPP).
Até janeiro, quando a primeira unidade do complexo foi aberta em Ribeirão das Neves (região metropolitana de Belo Horizonte), sete estados brasileiros tinham feito algum tipo de experiência nesse sentido: Bahia, Amazonas, Santa Catarina, Pernambuco, Minas Gerais, Paraná e Ceará. Os dois últimos abandonaram o sistema.
Quando o complexo penitenciário de Ribeirão das Neves estiver totalmente concluído, terão sido in­vestidos R$ 280 milhões e 3.040 vagas estarão disponíveis, sendo 608 por unidade. Esse custo é arcado pelo consórcio que venceu a licitação. Em contrapartida, o governo mineiro deverá pagar R$ 2,7 mil reais mensais por detento que ingressar no complexo.
Esse valor só será desembolsado integralmente se o gestor privado cumprir as metas estabelecidas em um conjunto de 380 indicadores de desempenho, entre os quais o número de presos trabalhando e estudando, bem como a prestação de assistência médica, odontológica, psicológica, social e jurídica.
Ao Estado caberá fiscalizar o sistema, bem como administrar e fazer cumprir as penas, em conjunto com o Judiciário. O poder público também mantém a prerrogativa de transportar os sentenciados, fazer a segurança externa e das muralhas e intervir diretamente em situações de crise ou confronto.
Segundo Denise Magalhães, diretora-executiva de uma das empresas que compõem o consórcio, “não precisamos ter um pensamento radical de que a única solução é a terceirização. A iniciativa privada tem condições de ajudar muito o Estado, através de um equilíbrio”. Ela afirma que a principal vantagem da cogestão é a rapidez das empresas na resolução de problemas. Seja no caso da quebra de uma câmera de segurança ou da identificação de um funcionário corrupto, pode-se tomar providências sem ter que recorrer a licitações ou processos judiciais. A diretora também destaca que as PPPs podem favorecer efetivos trabalhos de ressocialização dos detentos.
Por outro lado, Fernanda Matsuda, coordenadora-chefe do Núcleo de Pesquisas do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, não vê as PPPs com bons olhos. Ela afirma que a administração privada tira do Estado o monopólio do uso da força e cria o risco de que se aumente deliberadamente o número de aprisionamentos e o tempo de encarceramento, como, segundo ela, já aconteceu nos Estados Unidos.
“Poderíamos investir em outras políticas, como a de não-encarceramento, que é perfeitamente possível. Temos hoje uma massa de 40% de presos provisórios, que poderiam estar respondendo ao processo em liberdade”, argumenta. “E não estou falando de pessoas que cometeram crimes graves, que representam um risco à sociedade. Estou falando da realidade que vejo quando vou ao Centro de Detenção Provisória de Pinheiros [São Paulo], onde há uma série de furtadores primários ou pessoas que estão presas por tentativa de furto há sete, oito meses, aguardando uma audiência”.

Daniel Fassa

Cidade Nova

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Livros & Informes

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  • AGUIAR, Carla Zamith Boin. Mediação e Justiça Restaurativa. São Paulo: Quartier Latin, 2009.
  • ALBUQUERQUE, Teresa Lancry de Gouveia de; ROBALO, Souza. Justiça Restaurativa: um caminho para a humanização do direito. Curitiba: Juruá, 2012. 304p.
  • AMSTUTZ, Lorraine Stutzman; MULLET, Judy H. Disciplina restaurativa para escolas: responsabilidade e ambientes de cuidado mútuo. Trad. Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2012.
  • AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de; CARVALHO, Salo de. A Crise do Processo Penal e as Novas Formas de Administração da Justiça Criminal. Porto Alegre: Notadez, 2006.
  • CERVINI, Raul. Os processos de descriminalização. 2. ed. rev. da tradução. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
  • FERREIRA, Francisco Amado. Justiça Restaurativa: Natureza. Finalidades e Instrumentos. Coimbra: Coimbra, 2006.
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