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1 de dez. de 2009

Artigo: PROCESSO PENAL CONSENSUAL: LINHAS GERAIS

Sem pretender esgotar o tema, o presente artigo buscará tratar sobre a temática do Processo Penal Consensual, voltando-se, especificadamente à análise da transformação (nacional e comparativa) da matéria processual penal, bem como dos movimentos de Política Criminal, para assim compreender a dita Justiça Restaurativa, cuja operacionalização visa a atingir a real e efetiva finalidade da pena.
De acordo com o artigo 59 do Código Penal, a aplicação da pena deverá ser estabelecida de forma necessária e suficiente para a reprovação e a prevenção de uma infração penal. Informa-se, assim, a adoção da teoria mista (ou unificadora) da pena pelo ordenamento jurídico brasileiro, que define como estes dois critérios como a finalidade da pena.
É evidente o contraponto existente entre o direito à liberdade do homem e o direito de punir do Estado. Contudo, historicamente, também se observou a falência do sistema punitivo conflituoso, do dito Processo Penal tradicional, diante da ineficácia de sua fundamentação teórica, a qual prega ser a pena privativa de liberdade o melhor meio de atingir o cunho retributivo e ressocializador da pena, e de, assim, combater a criminalidade pela máxima intervenção penal. Isso sem mencionar que a aplicação de um Direito Penal Máximo ainda contribui para uma inflação de leis penais (materiais e processuais), bem como à maior estigmatização e seletividade do sistema penal, conduzindo a graves injustiças.
O Processo Penal Consensual surge como um novo paradigma de solução de conflitos, composto por múltiplos instrumentos de resolução de comum acordo entre a vítima, o agente e o Estado (tais como a conciliação, a mediação e a negociação), no intuito de garantir a pacificação efetiva das relações sociais afetadas com a conduta infratora.
Os fundamentos para a adoção deste novo modelo – consensual – de resolução de conflitos, especialmente no âmbito da Justiça Penal, foram assim explicados por Luiz Flávio Gomes:

“(...) seus teóricos partem da concepção de que o crime retrata um conflito interpessoal, cuja solução efetiva, pacificadora, deve ser encontrada pelos próprios implicados, 'desde dentro', por meio de um fluido processo de comunicação, interação e negociação, em lugar de sua imposição pelo sistema legal, com seus critérios formalistas, coativos e, além disso, de elevado custo social.[1]”.
Ainda tratando destes fundamentos, Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo pontua, especialmente no tocante à chamada Justiça restaurativa, que este outro pensar e agir:

“(...) aplica-se a práticas de resolução de conflitos baseadas em valores que enfatizam a importância de encontrar soluções para um mais ativo envolvimento das partes no processo, a fim de decidirem a melhor forma de abordar as conseqüências do delito, bem como as suas repercussões futuras.[2]”.
A ideia da Justiça Restaurativa visa por práticas de resolução de conflitos baseadas no envolvimento ativo das partes no processo, como melhor forma de decisão, pois, nela, se abordam tanto as conseqüências do delito, quanto as suas repercussões. Os fundamentos para a adoção deste novo modelo – consensual – de resolução de conflitos, especialmente no âmbito da Justiça Penal, partem da concepção de que o crime retrata um conflito interpessoal, cuja solução efetiva, pacificadora, deve ser encontrada pelos próprios implicados, por meio de um fluido processo de comunicação, interação e negociação, ao invés de sua imposição pelo sistema legal, de elevados critérios formalistas, coativos, e de custo social.
Este novo sistema processual penal é claramente possível dentro de um Estado Social, Democrático de Direito Garantista, justamente por operacionalizar a responsabilidade penal, por estabelecer, normativamente, as condições exigidas para que uma pessoa se submeta a uma penalidade jurídica.
Percebe-se, pois, a complexidade do tema. Assim sendo, mostra-se de essencial valia a visão analítica, empírica, indutiva e altamente interdisciplinar que tem a Criminologia, a fim de abordar a temática pretendida através de uma maior proximidade com a realidade social, contando com informações mensuráveis sobre um determinado fato (pertencente ao seu objeto de estudo, a saber: o delinqüente, o delito, a vítima e o controle social). Tal ótica prima para que não sejam geradas meras conclusões especulativas ou demagogas, e encarando, assim, a Criminologia como uma verdadeira ciência, composta de método, objeto e funções próprios.
Além disso, para tratar-se do tema, faz necessário valer-se de uma multi-interdisciplinariedade de métodos, englobando aspectos jurídicos, sociológicos, políticos e afins, sob o prisma teórico e empírico, com o intuito de atingir satisfatoriamente os seus objetivos. Esta variedade de métodos afins indica a necessidade do uso da dialética, pois conduz a uma investigação da realidade através do confronto e do questionamento de teses, permitindo enxergar o objeto de estudo como resultado de múltiplos fatores. Acredita-se neste misto de instrumentos da técnica metodológica como meio essencial a uma correta fundamentação, capaz de extrair posicionamentos plausíveis à defesa do tema.
Desta forma, pretende-se integrar e fazer interagir, harmonicamente, os pilares das ciências criminais: a Criminologia – com seu caráter empírico; a Política Criminal – com seu cunho valorativo; e o Direito Penal e Processual Penal – normativos, proposicionais e obrigatórios –, para um estudo completo a respeito da Justiça Restaurativa como efetivo instrumento de realização da função da pena. Sendo o Direto um instrumento dinâmico de efetivação da justiça social, que busca, de forma incessante e renovável, pela justa aplicação de normas jurídicas no caso concreto, há que se optar também pelo método sócio-histórico. Observando os acontecimentos pretéritos, obtém-se uma análise teleológica do assunto, capaz de constatar o grau de influência de tais fatos na atual Política Criminal e também questioná-los quanto à sua eficácia e harmonia com os atuais princípios regentes.
A questão do Processo Penal Consensual no Direito Brasileiro teve início com a vigência da Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, no âmbito da Justiça Estadual (Lei n.º 9.099, de 26 de setembro de 1995), no intuito de resgatar a imagem do Poder Judiciário, especialmente quanto ao Processo Penal, de algo democrático, próximo da sociedade. Tal norma, dentre outras providências, ao instituir estes Juizados Especiais, atribuiu-lhes a competência para conciliar, julgar e executar a penas cominadas às infrações penais de menor potencial ofensivo (cuja pena máxima não supere a dois anos, cumulada ou não com pena de multa), observando as regras de conexão e contingência.
Esta atribuição visou, principalmente, atender algumas reivindicações há tempos reclamadas pela Criminologia moderna e demais movimentos de Vitimologia: a desburocratização do Processo Penal, a aproximação da jurisdição com a sociedade (em especial, com os seus membros hipossuficientes economicamente) e a pacificação social – concretização máxima da finalidade da pena. Tais objetivos são efetivados por meio de institutos despenalizadores (conciliação, transação, representação das lesões corporais culposas ou simples, e suspensão condicional do processo), aceitos constitucionalmente, que almejam a rápida e consensual solução do conflito através da reparação dos danos sofridos pela vítima.
Ressalta-se dizer que há outros elementos consensuais no ordenamento jurídico-penal brasileiro, tais como as medidas sócio-educativas ou protetivas, previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n.º 8.069/90), as penas restritivas de direitos previstas no Capítulo II da Lei de Execuções Penais (Lei n.º 7.210/34) e o instituto da delação premiada, cuja concretização baseia-se, em linhas reais, tanto no processo de despenalização da conduta infratora, nas propostas de reintegração da vítima sem maiores traumas, na ressocialização do infrator, quanto na participação de ambos (vítima e infrator) no bom andamento do processo e funcionamento da Justiça.
Pautada em princípios como a simplicidade, a oralidade, a economia processual, a gratuidade, a celeridade e a conciliação, este modelo consensual do Processo Penal buscou dinamizar a sua função instrumental, a fim de evitar as mazelas institucionais da morosidade, do alto custo e do formalismo exacerbado, e garantir o adequado acesso e a efetiva prestação jurisdicional de um Estado Social Democrático de Direito. Entretanto, muitas são as críticas contrárias à adoção e ao desenvolvimento deste outro modelo de solução de conflitos no âmbito penal, em especial quanto à sua eficácia e à sua legitimidade.
Assim sendo, um estudo focado em trazer subsídios teóricos e empíricos para a aceitação do Processo Penal Consensual como meio eficaz de acesso à justiça e de efetivação da real finalidade da pena é primordial. Assim como também é mister que se compreenda a transformação do Processo Penal e de seu sistema punitivo – tanto no Direito Brasileiro quanto no Direito Comparado –, analisando os princípios e os movimentos de Política Criminal que conduziram à tendência ao modelo consensual, os instrumentos processuais deste novo modelo, bem como as críticas que ele enfrenta. Desta forma, será possível considerar a questão da inclusão social perante a real função da pena e do acesso jurisdicional.


Notas de Rodapé:
[1] GOMES, Luiz Flávio. Justiça conciliatória, restaurativa e negociada, apud MOLINA, Antonio García-Pablos de. Tratado de criminología. 2 ed. Valencia: Tirant lo Blanch, 1999, p. 1.008.
[2] AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de. O Paradigma emergente em seu labirinto: notas para o aperfeiçoamento dos juizados especiais criminais. In WUNDERLICH, Alexandre; CARVALHO, Salo de (orgs.). Novos diálogos sobre os juizados especiais criminais. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2005, p. 136.



REFERÊNCIAS
CASTRO, Josefina. O processo de mediação em processo penal: elementos de reflexão. Revista do Ministério Público, n.º 105, ano 27, jan-mar 2006.
GOMES, Luiz Flávio. Justiça conciliatória, restaurativa e negociada, apud MOLINA, Antonio García-Pablos de. Tratado de criminología. 2 ed. Valencia: Tirant lo Blanch, 1999.
TIAGO, Tatiana Sandy. Implementação da justiça restaurativa por meio da mediação penal. In: AZEVEDO, André Gomma de; BARBOSA, Ivan Machado Barbosa (orgs.). Estudos em arbitragem, mediação e negociação. v 4. Brasília: Grupos de Pesquisa, 2007.
WUNDERLICH, Alexandre; CARVALHO, Salo de (orgs.). Novos diálogos sobre os juizados especiais criminais. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2005.
ZEHR, Howard. Trocando as lentes: um novo foco sobre o crime e a justiça. Trad. Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2008.

Como citar este artigo: SANTOS, Andrea Alves dos.  Processo Penal Consensual: Linhas Gerais. Disponível em http://www.lfg.com.br - 30 de novembro de 2009.

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Livros & Informes

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