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2 de jul. de 2019

Justiça restaurativa busca pacificar conflitos

O objetivo da modalidade não é condenar, mas possibilitar um acordo entre as partes envolvidas, solucionando os problemas entre elas para além do âmbito do Judiciário

Reportagem: Ana Luisa Araujo Mora,
sob supervisão Edição: Joseana Paganine


TODO BRASILEIRO TEM assegurado por lei o direito à integridade pessoal, mas a realidade é um pouco diferente. Quando um indivíduo agride outro, seja física, psíquica ou moralmente, é muito difícil que esse dano seja reparado. Em primeiro lugar, por causa da lentidão das ações judiciais. Mesmo quando há condenação, o encarceramento não conserta, por si só, os estragos. Tampouco impede que, cumprida a pena, o autor do delito volte a cometê-lo. 

Visando justamente reparar, na medida do possível, esse tipo de dano é que nasceu a Justiça restaurativa. À primeira vista, o modelo pode parecer ingênuo e excessivamente brando com os autores de crimes. Entretanto, o método pelo qual a Justiça atua como facilitadora de um acordo entre a parte que errou e a vítima pode ser uma saída para um país sobrecarregado por crimes, em boa parte impunes, e pelos problemas decorrentes de um sistema prisional violento e pouco educativo.

Facilitador

Por intermédio de um facilitador, a Justiça restaurativa reúne vítima, ofensor, famílias, testemunhas e comunidade. O facilitador atua como único representante do aparato judicial. O papel dele é acompanhar o processo, mas sem tomar decisões ou proferir sentenças. Cabe à vítima o papel principal, de decidir os locais das reuniões, dias e horários, e de aceitar ou não a oferta de reparação, recuperando o poder que lhe havia sido subtraído pela ação do ofensor. O desfecho resulta do entendimento entre os envolvidos. 

Instituída pela Resolução 225/2016 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a Justiça restaurativa ganhou naquele ano o nome de Política Nacional de Justiça Restaurativa no Poder Judiciário. Experiências nesse campo, porém, já vinham sendo realizadas desde 2005, em Porto Alegre. Em termos mundiais, o modelo data do final dos anos 1970 e foi implantado inicialmente na Nova Zelândia, no Canadá e nos Estados Unidos.

Também em 2016, o então senador Ricardo Ferraço apresentou o Projeto de Lei do Senado (PLS) 65, que instituiu o Ato Nacional dos Direitos das Vítimas de Crimes, no qual se inserem as práticas de Justiça restaurativa. O texto aguarda relatório do senador Alessandro Vieira (CidadaniaSE) na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ).

Transformação

Segundo o australiano Terry O’Connell, diretor da Real Justice Australia, a Justiça precisa trabalhar para que quem prejudicou se coloque no lugar de quem foi prejudicado. Conforme O’Connell, o método restaurativo não modifica o sistema penal mas, sim, transforma as experiências que as pessoas têm nesse sistema. Ele participou de audiência pública sobre o tema no Senado, na Comissão de Direitos Humanos (CDH), em maio.

— É uma forma útil e justa de resolver conflitos, especialmente no âmbito dos delitos de menor poder ofensivo e de outros crimes que, embora graves, precisam não apenas da resposta penal tradicional, mas de um grau maior de resolutividade social, empoderamento das vítimas e restauração dos laços e valores sociais — argumentou o senador Lucas Barreto (PSD-AP), que presidiu a audiência.

A juíza Carline Nunes aplica a Justiça restaurativa na comunidade Ambrósia, uma das mais violentas do Amapá, nomunicípio de Santana. Segundo ela, o sistema resolve processos, e não conflitos, levando em conta ainda as falhas da Justiça punitiva, como superlotação de presídios.

— Porque é fácil julgar e dar sentenças. Mas, no dia seguinte, as pessoas têm problemas de novo e voltam pedindo por mais justiça. É por isso que passei a valorizar a restauração e a pacificação social — disse a juíza.

O método pode até ajudar a solucionar conflitos aparentemente insolúveis por envolverem perdas muito dolorosas. 

Em dezembro de 2013, em Planaltina (DF), distante apenas 45 km do Congresso, Leonardo Monteiro atropelou seis pessoas da mesma família, matando a matriarca. A filha mais nova da vítima perdeu parcialmente a visão. A nora ficou traumatizada e por isso não conseguia engravidar. Leonardo, que fugiu para não sofrer linchamento, foi acusado de homicídio culposo, mas um ano e meio após o acidente, não tinha sido julgado. 

O técnico do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) Júlio César Melo propôs um encontro entre a família e o acusado, que foi precedido de 19 encontros individuais. Ao final, o motorista compreendeu a dimensão de seu erro e concordou em pagar parte da cirurgia da criança e o tratamento de fertilização da nora da vítima, embora não tenha sido necessário: com a resolução do caso, o trauma foi superado e a moça conseguiu engravidar. O ofensor foi condenado à pena mínima, dois anos em regime semiaberto.

Acordo

A reparação associada a uma pena judicial não é uma regra rígida. Tudo vai depender do acordo estabelecido e da percepção do juiz sobre a gravidade do caso.

A iniciativa de aplicar a Justiça restaurativa em um caso pode ser tanto do magistrado quanto dos envolvidos. O que o modelo busca é aproximar vítima e ofensor, mas garantindo à vítima um papel de protagonismo durante o processo.

Em 2014, dois vizinhos da zona rural do DF brigavam pelos limites das terras. O processo foi levado à vara cível e resolvido em tribunal. Ainda assim, eles continuaram a brigar pelas águas de uma mina. Animais de uma das chácaras foram mortos. Nesse caso, o acordo restaurativo envolveu, além das partes, a Agência Nacional de Águas e a ONG ambiental WWF, que sugeriram a adoção de um programa de duplo apadrinhamento da mina.

Para a Coordenadora do Programa Justiça Restaurativa do Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJ-DFT), Catarina Correia, é comum que a Justiça restaurativa seja relacionada à impunidade, mas o modelo está longe disso. “É punição inteligente”, afirma ela em vídeo didático sobre o assunto produzido pelo tribunal.

Titular do Núcleo Permanente de Justiça Restaurativa do TJ-DFT, o facilitador Júlio César Melo explica, no mesmo vídeo, que a Justiça criminal pode ser, muitas vezes, ineficiente, ao não garantir que o autor de um delito entenda que agiu errado: “Ele vai ser preso, fica com mais raiva, volta para a sociedade e aí se sente ainda mais justificado para continuar cometendo um crime”. 

A promotora Sílvia Canela, que atua em comunidade violenta do Amapá, promove círculos de discussão voltados ao engajamento da comunidade, nos quais as pessoas escutam as histórias e perspectivas umas das outras. Conforme relatou no Senado, dezenas de meninas pararam de se automutilar, a criminalidade na região caiu e a escola do local registra crescente Índice de Desenvolvimento da Educação Básica. 

— Precisamos ter um novo olhar para o ser humano, para o conflito e para a sociedade — disse a promotora.





Fonte: Jornal do Senado. Especial Cidadania. Ano XIV, n. 682. Brasília. 2.7.2019.





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Livros & Informes

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