O objetivo da modalidade não é condenar, mas possibilitar um acordo entre as partes envolvidas, solucionando os problemas entre elas para além do âmbito do Judiciário
Reportagem: Ana Luisa
Araujo Mora,
sob supervisão
Edição: Joseana Paganine
TODO BRASILEIRO
TEM assegurado por lei
o direito à integridade
pessoal, mas a realidade
é um pouco diferente.
Quando um indivíduo
agride outro, seja física,
psíquica ou moralmente, é muito difícil que
esse dano seja reparado.
Em primeiro lugar, por
causa da lentidão das
ações judiciais. Mesmo
quando há condenação, o encarceramento
não conserta, por si só,
os estragos. Tampouco
impede que, cumprida
a pena, o autor do delito
volte a cometê-lo.
Visando justamente
reparar, na medida do
possível, esse tipo de
dano é que nasceu a
Justiça restaurativa. À
primeira vista, o modelo
pode parecer ingênuo e
excessivamente brando
com os autores de crimes.
Entretanto, o método
pelo qual a Justiça atua
como facilitadora de um
acordo entre a parte que errou e a vítima pode
ser uma saída para um
país sobrecarregado por
crimes, em boa parte
impunes, e pelos problemas decorrentes de um
sistema prisional violento
e pouco educativo.
Facilitador
Por intermédio de um
facilitador, a Justiça restaurativa reúne vítima,
ofensor, famílias, testemunhas e comunidade.
O facilitador atua como
único representante do
aparato judicial. O papel
dele é acompanhar o
processo, mas sem tomar decisões ou proferir
sentenças. Cabe à vítima
o papel principal, de decidir os locais das reuniões, dias e horários, e de
aceitar ou não a oferta de
reparação, recuperando
o poder que lhe havia
sido subtraído pela ação
do ofensor. O desfecho
resulta do entendimento
entre os envolvidos.
Instituída pela Resolução 225/2016 do Conselho Nacional de Justiça
(CNJ), a Justiça restaurativa ganhou naquele ano o nome de Política
Nacional de Justiça Restaurativa no Poder Judiciário. Experiências nesse
campo, porém, já vinham
sendo realizadas desde
2005, em Porto Alegre.
Em termos mundiais, o
modelo data do final dos
anos 1970 e foi implantado inicialmente na Nova
Zelândia, no Canadá e
nos Estados Unidos.
Também em 2016, o
então senador Ricardo
Ferraço apresentou o
Projeto de Lei do Senado (PLS) 65, que instituiu o Ato Nacional dos
Direitos das Vítimas
de Crimes, no qual se
inserem as práticas de
Justiça restaurativa. O
texto aguarda relatório
do senador Alessandro Vieira (CidadaniaSE) na Comissão de
Constituição, Justiça e
Cidadania (CCJ).
Transformação
Segundo o australiano
Terry O’Connell, diretor
da Real Justice Australia,
a Justiça precisa trabalhar
para que quem prejudicou se coloque no lugar
de quem foi prejudicado.
Conforme O’Connell, o
método restaurativo não
modifica o sistema penal
mas, sim, transforma as
experiências que as pessoas têm nesse sistema.
Ele participou de audiência pública sobre o tema
no Senado, na Comissão
de Direitos Humanos
(CDH), em maio.
— É uma forma útil e
justa de resolver conflitos, especialmente no
âmbito dos delitos de
menor poder ofensivo
e de outros crimes que,
embora graves, precisam
não apenas da resposta
penal tradicional, mas
de um grau maior de
resolutividade social,
empoderamento das
vítimas e restauração dos
laços e valores sociais —
argumentou o senador
Lucas Barreto (PSD-AP),
que presidiu a audiência.
A juíza Carline Nunes
aplica a Justiça restaurativa na comunidade
Ambrósia, uma das mais
violentas do Amapá, nomunicípio de Santana.
Segundo ela, o sistema
resolve processos, e não
conflitos, levando em
conta ainda as falhas da
Justiça punitiva, como superlotação de presídios.
— Porque é fácil julgar
e dar sentenças. Mas, no
dia seguinte, as pessoas
têm problemas de novo
e voltam pedindo por
mais justiça. É por isso
que passei a valorizar a
restauração e a pacificação social — disse a juíza.
O método pode até
ajudar a solucionar conflitos aparentemente insolúveis por envolverem
perdas muito dolorosas.
Em dezembro de 2013,
em Planaltina (DF), distante apenas 45 km do
Congresso, Leonardo
Monteiro atropelou seis
pessoas da mesma família, matando a matriarca.
A filha mais nova da vítima perdeu parcialmente
a visão. A nora ficou traumatizada e por isso não
conseguia engravidar.
Leonardo, que fugiu para
não sofrer linchamento,
foi acusado de homicídio
culposo, mas um ano e
meio após o acidente,
não tinha sido julgado.
O técnico do Tribunal
de Justiça do Distrito
Federal e Territórios (TJDFT) Júlio César Melo
propôs um encontro entre a família e o acusado,
que foi precedido de 19
encontros individuais. Ao
final, o motorista compreendeu a dimensão de
seu erro e concordou em
pagar parte da cirurgia da
criança e o tratamento de
fertilização da nora da
vítima, embora não tenha
sido necessário: com a
resolução do caso, o trauma foi superado e a moça
conseguiu engravidar. O
ofensor foi condenado à
pena mínima, dois anos
em regime semiaberto.
Acordo
A reparação associada
a uma pena judicial não
é uma regra rígida. Tudo
vai depender do acordo
estabelecido e da percepção do juiz sobre a
gravidade do caso.
A iniciativa de aplicar
a Justiça restaurativa em
um caso pode ser tanto
do magistrado quanto
dos envolvidos. O que o modelo busca é aproximar vítima e ofensor, mas
garantindo à vítima um
papel de protagonismo
durante o processo.
Em 2014, dois vizinhos
da zona rural do DF
brigavam pelos limites
das terras. O processo
foi levado à vara cível e
resolvido em tribunal.
Ainda assim, eles continuaram a brigar pelas
águas de uma mina.
Animais de uma das
chácaras foram mortos.
Nesse caso, o acordo
restaurativo envolveu,
além das partes, a Agência Nacional de Águas e
a ONG ambiental WWF,
que sugeriram a adoção
de um programa de
duplo apadrinhamento
da mina.
Para a Coordenadora
do Programa Justiça
Restaurativa do Tribunal
de Justiça do Distrito Federal (TJ-DFT), Catarina
Correia, é comum que a
Justiça restaurativa seja
relacionada à impunidade, mas o modelo está
longe disso. “É punição
inteligente”, afirma ela
em vídeo didático sobre
o assunto produzido pelo
tribunal.
Titular do Núcleo Permanente de Justiça Restaurativa do TJ-DFT, o
facilitador Júlio César
Melo explica, no mesmo
vídeo, que a Justiça criminal pode ser, muitas
vezes, ineficiente, ao não
garantir que o autor de
um delito entenda que
agiu errado: “Ele vai ser
preso, fica com mais raiva, volta para a sociedade
e aí se sente ainda mais
justificado para continuar cometendo um crime”.
A promotora Sílvia
Canela, que atua em
comunidade violenta do
Amapá, promove círculos
de discussão voltados
ao engajamento da comunidade, nos quais
as pessoas escutam as
histórias e perspectivas
umas das outras. Conforme relatou no Senado,
dezenas de meninas pararam de se automutilar,
a criminalidade na região
caiu e a escola do local
registra crescente Índice
de Desenvolvimento da
Educação Básica.
— Precisamos ter um
novo olhar para o ser
humano, para o conflito e
para a sociedade — disse
a promotora.
Fonte:
Jornal do Senado. Especial Cidadania. Ano XIV, n. 682. Brasília. 2.7.2019.
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