Como
caminhos legais para a punição de uma pessoa, os direitos penal e processual penal apresentam estruturas próprias, com diversas peculiaridades e considerável complexidade argumentativa. A astúcia das construções teóricas, a racionalidade da estrutura epistemológica, a sofisticação e a impessoalidade da linguagem e do discurso impressionam, e conseguem manter estudantes, acadêmicos e atores jurídicos alheios àquilo que, de fato, propiciam: o uso da violência.
Segundo
Jean-Marie Muller, “
a cultura da violência tem necessidade de se reportar a uma construção racional que permita aos indivíduos justificar a violência. É aqui que intervém a ‘ideologia da violência’. A sua função é construir uma representação da violência que evite ver aquilo que ela é efectivamente – desumana e escandalosa. Ela visa ocultar aquilo que a violência tem de irracional e de inaceitável e fazer prevalecer uma representação racional aceitável. Trata-se de dissimular a realidade escandalosa da violência através de uma representação que a valoriza positivamente. O objectivo pretendido – e muitas vezes alcançado – é a banalização da violência. Em vez de ser banida – declarada fora da lei –, a violência é banalizada – declarada em conformidade com a lei. Desde logo, mais nenhum travão intelectual se oporá ao uso da violência”
(1).
Escondidos atrás de papéis e discursos, nós, atores jurídicos, permanecemos ignorando o que o sistema produz de forma mais evidente: a violência. Não perceber a consequência de
aplicar a pena em uma sentença isenta os atores jurídicos da responsabilidade para com o condenado: as palavras e os cálculos belamente digitados em um computador não lhes possibilitam enxergar o desgosto da jaula e o
cheiro do ralo com que o condenado será obrigado a viver. A cultura da violência está, portanto, exatamente onde ela aparenta
não estar: em uma sentença, em um acórdão, em um julgamento, em sistemas que
absorvem a realidade e nos permitem, justamente por isso, seguir adiante.
Chama atenção a manutenção desse sistema: hermeticamente fechado e epistemologicamente estruturado em pressupostos científicos questionáveis, carrega vasta gama de ferramentas obsoletas, que mais produzem violência do que a minimizam. Como um típico espaço
sagrado em que se deve afastar os
profanos, a
ciência jurídica funciona desde uma concepção racionalista, mecanicista e meramente instrumental, desvinculada de quaisquer outros fins que possam
atrapalhar a busca pela
verdade. E do seio de seu autoenclausuramento, nada se poderia esperar senão uma
atitude narcísica(2) e expansiva de seus atores: o direito e o processo penal, justificáveis por si mesmos e autônomos em relação ao mundo real, seriam os mais efetivos meios para
proteger a sociedade.
As discussões mais comuns no âmbito penal e processual penal, por sua vez, dizem respeito apenas a possíveis reformas: é criado um ambiente com respaldo prático (atores jurídicos) e teórico (professores universitários e intelectuais) para que se possa articulá-las da melhor maneira possível, a fim de atualizar os mofados Código Penal e de Processo Penal. Interessante, no entanto, perceber a circularidade da discussão: enquanto preocupados em
melhorar esses instrumentos, esquecem que se trata de uma tarefa
complicada, pois pouco há de errado com os dois códigos: o que há são instrumentos que em nenhum momento atingiram os fins a que se propuseram. Discuti-los é necessário e fundamental – pois o sistema continua a
desnudar vidas – mas parece mais importante estabelecer espaços em que se procure pensar
não em um direito penal melhor,
mas em algo melhor que o direito penal, como queria
Radbruch.
Ainda presos ao mito do contrato social e da dicotomia
civilização vs barbárie, muitos penalistas tremem só de ouvir a palavra “vítima”. Atados à ilusão de que sem o contrato social retornaríamos à barbárie e a uma espécie de derramamento de sangue generalizado, ainda acreditam que se a vítima fosse (re)incorporada ao processo penal, buscaria apenas a vingança. Parece-nos, no entanto, uma ideia duvidosa, e temos pelo menos duas razões para isso: (a) uma, do ponto de vista legal, pois a lei permite que a vítima (ofendido) seja titular de uma ação penal (a privada); e outra (b) do ponto de vista empírico, pois reduzir a vontade das vítimas apenas à intenção de uma vingança soa como uma racionalização reducionista demais para tantas possibilidades existentes.
Com o nível das discussões sobre direito penal e processo penal estabelecido tão-somente nas reformas legislativas, deixa-se de lado toda possibilidade de se pensar em algo que possa, pelo menos, devolver o conflito àqueles que efetivamente querem vê-lo resolvido: os envolvidos. E aqui não se deve pensar apenas na vítima: é preciso pensar também nos ofensores, nos direta e indiretamente envolvidos (família, amigos etc.) e em quem mais uma
situação problemática (para lembrar
Louk Hulsman) possa vir a interessar.
A maioria dos congressos e seminários debate unicamente
reformas penais e processuais penais, quando o furo é, evidentemente,
bem mais embaixo. Não se quer com isso dizer que se deve discutir
apenas novas propostas ao sistema penal, como se elas fossem solucionar os males do mundo – obviamente
não é essa a questão: se o sistema penal produz tantos danos, é claro que o debate sobre as reformas é importantíssimo. Porém, é preciso dar um passo adiante.
Em 31 de março de 1976
, Nils Christie, em conferência intitulada “
Conflicts as Property”, na inauguração do Centro de Estudos Criminológicos da Universidade de Sheffield, Inglaterra (posteriormente publicada em forma de artigo sob o mesmo título na Revista Britânica de Criminologia)
(3), estabeleceu importante marco acadêmico em relação às proposições abolicionistas ao problematizar os motivos que levaram o Estado a
roubar o conflito das partes: “
por qual motivo não poderíamos devolvê-los às partes?”, questiona o professor da Universidade de Oslo, aduzindo que “
afinal, eles possuem muito mais interesse na resolução da questão do que qualquer outra pessoa”.
Alguns anos mais tarde, em 1982,
Louk Hulsman, em coautoria com
Jacqueline Bernat de Celis, publicou “
Peines Perdues”
(4), em que acentua as críticas ao sistema penal e, de forma ainda mais incisiva, propõe a sua abolição.
Tais leituras – de
Muller,
Christie e
Hulsman – permitem-nos pensar na forma como se estrutura a resposta estatal à violência ilegítima –
estrutura essa que é composta, justamente, pelo direito penal e pelo processo penal. Não se ignora a sua relevância jurídica e política, assim como não se discutirá se elas devem ou não ser abolidas, pois não desconhecemos seu importante papel de limite ao poder punitivo, mesmo que apenas em casos isolados. No entanto, propõe-se questionar o motivo pelo qual sequer se pensa em
outras estruturas, em
outros modelos de resposta às
situações problemáticas que poderiam ser utilizados. Importante salientar que o direito penal e o processo penal não passam de
métodos, ou seja, de
caminhos que em determinado momento histórico foram escolhidos para que, de forma racional (?), pudesse o Estado impor dor aos cidadãos acusados de violar a Lei.
Ao desvelar a violência latente em discursos pretensamente neutros
porque científicos,
Muller viabiliza uma crítica profunda às teorias legitimadoras da imposição permitida de dor – que, por sua vez, autoriza forte questionamento das teorias justificacionistas do direito penal e do processo penal, bem como de toda a racionalidade instrumental que garante a manutenção de um sistema baseado no exercício
legítimo de violência.
Esses e outros são os motivos que explicam a nossa escolha pelo modelo conhecido como
Justiça Restaurativa, que permite avanço para além dos pressupostos modernos de ciência e, precipuamente, que se chegue a um resultado interessante não apenas em termos quantitativos, mas, principalmente, em termos
qualitativos.
A fim de buscar não uma justiça padronizada, mas singularizada e adequada a cada situação, surge como alternativa à falência do modelo tradicional de justiça criminal, com a finalidade de restaurar o máximo possível do
status quo anterior ao delito. Trata-se, ainda, de um modelo que, com a participação das partes, procura
solucionar a situação problemática, e não simplesmente em
atribuir culpa a um único sujeito
(5).
Raffaella Pallamolla acentua que “
a justiça restaurativa possui um conceito não só aberto como, também, fluido, pois vem sendo modificado, assim como suas práticas, desde os primeiros estudos e experiências restaurativas”
(6). E talvez essa construção ainda em aberto seja justamente um dos pontos mais importantes da justiça restaurativa, uma vez que não há engessamento das formas de controle social via justiça criminal e, portanto, os
casos-padrão e as
respostas-receituário ainda não fazem parte de seu vocabulário. Para
Lode Walgrave, “
Restorative Justice is an unfinished product. It is a complex and lively realm of different – and partly opposite – beliefs and options, renovating inspirations and practices in different contexts, scientific ‘crossing swords’ over research methodology and outcomes. (...) It is a field on its own, looking for constructive ways of dealing with the aftermath of crime, but also part of a larger socio-ethical and political agenda”
(7).
Não se pretende, com isto, a abolição do sistema penal, mas, quiçá, a sua drástica redução. Se a justiça restaurativa vai ou não ser algo melhor que o direito penal ainda não é possível saber, mas apenas por propor uma abordagem ao fenômeno criminal pautada na ideia de não-violência, já poderá ser menos genocida.
Esperamos encontrar discussões em que os temas sejam reais, e não apenas teorizações vazias que nada proporcionam senão a (re)construção de castelos encantados em areias há séculos movediças. A insistência em se discutir o que não mais funciona é forte, e mais parece uma constante do que uma tentativa esporádica de construção de algo efetivamente novo.