MEDIAÇÃO NAS ORGANIZAÇÕES
Depois de um tempo de funcionamento organizacional cooperativo, participativo e responsável, os membros da organização escolhem aqueles colegas que actuarão como mediadores internos. Esses profissionais continuam a exercer as suas funções habituais, mas são formados para actuarem como mediadores entre os colegas (seus pares) que não tenham conseguido resolver os seus problemas directamente pelo diálogo.
Desde o recrutamento, origem de expectativas não satisfeitas, até à manifestação de conflitos funcionais e pessoais, a mediação contribui para uma maneira, positiva e satisfatória, de trabalhar cooperativamente todas as questões que surgem no dia‐a‐dia.
MEDIAÇÃO NAS ESCOLAS
Estes mesmos princípios e procedimentos são usados nas organizações escolares, tendo em conta a necessária harmonia entre todas as pessoas que fazem uma escola. Directores, professores, administrativos e alunos são a escola. Não podemos partir do conceito disciplinador, como se de um sistema penal se tratasse, considerando os alunos como os geradores de violência e de perturbação, responsáveis por todos os males da escola.
É necessária a transformação da escola para dar abertura à cooperação, ao respeito e à participação activa de todos na sua acção formadora.
Depois de implementados os conceitos da mediação e de a comunidade escolar estar sensibilizada para os procedimentos pacíficos de abordagem dos conflitos, através das aulas ministradas pelos próprios professores da escola formados em mediação, os alunos escolhem os colegas que consideram idóneos para serem capacitados como mediadores e que serão os que actuarão quando o diálogo directo não conseguir resolver os conflitos.
MEDIAÇÃO NAS COMUNIDADES
São vários e diversos os métodos aplicados para levar a mediação de conflitos às comunidades. Geralmente começa‐se por se organizar centros de atendimento à população, conduzidos por assistentes sociais, advogados, psicólogos e mediadores. Estes centros, organizados e financiados pelo Estado através de protocolos entre as autoridades municipais, o poder judicial e/ou o poder
executivo, têm como finalidade prestar informação às pessoas sobre os seus direitos, prestar assistência e dar espaço a que possam ser trabalhados os conflitos de vizinhança, de família e patrimoniais dos moradores da região. Também são o enlace entre os tribunais e as entidades de registo das pessoas. Outra modalidade operacional, que pode ou não complementar a anterior, é a formação de agentes (vizinhos) da mesma comunidade para actuarem como mediadores (mediação entre pares).
Em 2006, publiquei (1) um trabalho sobre mediação para uma comunidade participativa, onde a actividade dos mediadores foi desenvolvida não só para atender os conflitos apresentados pelas pessoas, mas fundamentalmente para poder actuar sobre os moradores de uma comunidade, para exercer sobre eles a função de reconhecimento e de legitimação, para que se sentissem e
reconhecessem em condições de participar activamente na apresentação dos problemas da comunidade e na procura das melhores soluções.
Este mediador encoraja a participação e a autogestão, dando o que Boaventura de Sousa Santos chama de efeito emancipador pelo conhecimentoreconhecimento e David Held chama de autonomia.
A comunidade participativa, gérmen da democracia participativa, assume a responsabilidade das suas questões e, longe de apontar culpados pelo estado das coisas, propõe conduzir, cooperativa e solidariamente, a procura de soluções que levem a uma melhor qualidade de vida, no respeito de cada um e na satisfação de todos.
A MEDIAÇÃO NA JUSTIÇA RESTAURATIVA
Nas últimas décadas, como resultado do questionamento do sistema penal ocidental, surgiram procedimentos de inclusão, numa função mais activa da vítima, das famílias e das comunidades dos arguidos e das próprias vítimas. Estes sistemas chamados restaurativos propõem o diálogo para se conseguir transformar a experiência de violência numa experiência vital, da qual se extraem os ensinamentos que permitem a reparação do dano produzido através da consciência da repercussão e transcendência dos actos. As famílias, junto da comunidade, participam activamente, assumindo uma intervenção responsável nos factos que se produzem na sociedade.
Dos conceitos liberais de culpado, exclusão e castigo, passa‐se ao tratamento pelo diálogo conduzido pelo mediador a partir da co‐responsabilidade, da inclusão e da reparação responsável.
Estes sistemas que podem funcionar de forma paralela à justiça penal ou em substituição dela nas organizações sociais abolicionistas, foram trazidos das sociedades mais tradicionalistas da Oceânia, África, Ásia e América, que sobreviveram à colonização ocidental.
Como resultado destes procedimentos conseguiu‐se auxiliar as vítimas na superação do seu sofrimento e reduzir, de maneira sensível, a reincidência.
O papel mais activo da vítima, mediante a possibilidade de dialogar com o seu agressor e de planear com ele a maneira de ser reparado o dano, permite superar construtivamente a situação, sem a necessidade de castigos nem de exclusão.
Como parte fundamental da justiça restaurativa, a mediação entre vítima e agressor ou arguido ocupa o espaço central do sistema. Em muitos países, Portugal entre eles, a mediação na área penal é proporcionada ainda antes da sentença judicial, em determinados delitos. Noutros países, existe a figura do mediador que actua dentro das prisões, oferecendo a mediação aos internos que desejem dialogar com as suas vítimas, com o objectivo de se superar e reparar o dano produzido. No caso de vítima e agressor concordarem, inicia‐se uma série de sessões com cada um deles, em separado, para finalmente se chegar a uma ou várias sessões conjuntas. As sessões individuais com o agressor e, depois, as sessões conjuntas com a vítima são realizadas na mesma prisão e, geralmente, não têm relação com o cumprimento da pena estabelecida no julgamento.
A MEDIAÇÃO NAS PRISÕES
Como síntese de todos os exemplos apresentados e directamente ligados às mediações entre vítimas e agressores, começou a ministrar‐se palestras e aulas nas prisões, levando os conceitos da mediação, de abordagem pacífica dos conflitos pela cooperação e pelo respeito, de reconhecimento e de responsabilidade e, em definitivo, o conceito de participação responsável como forma de inter‐relação e de convívio.
A partir destas aulas, os internos foram‐se interessando em aprofundar esta metodologia de resgate do ser humano e de resolução de conflitos pelo diálogo, o que originou a formação de mediadores internos, que passariam a oferecer os seus serviços aos colegas de prisão. Implementava‐se, assim, a mediação entre pares mais impressionante e expressiva, dadas as condições especiais, de pessoas privadas de liberdade para cumprirem a pena que lhes tinha sido
imposta pelos tribunais.
A experiência mais bem sucedida que conheço é a do CERESO (Centro de Reinserção Social) da cidade de Hermosillo, no estado de Sonora, México, sem excluir outras experiências noutros países.
O Instituto de Mediación de México, em conjunto com a Universidad de Sonora e com o apoio das autoridades do sistema prisional mexicano, implementou um programa de palestras sobre mediação – que abordavam os conceitos de ser humano, de relacionamento, de respeito, de cooperação, de solidariedade e de conflitos propostos pela mediação –, às quais vinha assistindo, de forma voluntária, um número cada vez maior de internos da prisão.
À medida que as aulas se foram desenvolvendo, graças às condições humanas e profissionais dos oradores, foi‐se gerando um espaço de reflexão dos participantes, o que levava a que estes se interessassem cada vez mais na matéria, solicitando aos professores um aprofundamento dos conceitos e das técnicas da mediação de conflitos.
A seu pedido, foram formados como mediadores alguns internos e tornou‐se necessário um local para a realização das mediações. As autoridades da prisão concederam‐no, passando a ser frequentado por aqueles que desejavam resolver pacificamente os conflitos com os seus companheiros de prisão.
A partir dessa experiência, os mesmos mediadores começaram a organizar acções de divulgação do serviço que prestavam e do funcionamento da mediação em geral.
Foi montada por eles mesmos uma peça de teatro, a que assistiram autoridades, guardas e internos, como forma de os incluir a todos na filosofia e nos critérios relacionais da mediação. O efeito foi excelente e a cultura da mediação começou a gerir também as relações entre os guardas e entre eles e os internos. Nos anos decorridos desde a implementação desta cultura, não se verificou nenhum assassínio (facto frequente anteriormente) nem nenhum acto de violência, para além de algumas brigas isoladas, geralmente detidas pelos próprios colegas, que logo indicam o recurso ao serviço de mediação.
Em 2005 tive a oportunidade de trabalhar com estes internos, para lhes levar os conceitos da mediação para uma comunidade participativa. Eles já conseguiam atender os conflitos interpessoais que se apresentavam à mediação, mas não podiam ultrapassar as terríveis condicionantes de serem presos. Viviam de maneira muito precária e tinham sobre as suas cabeças a maldição de terem cometido delitos que marcavam o seu passado e que condicionavam o seu presente relacional com as respectivas famílias e, pior ainda, que tingia de negro qualquer visão de futuro.
Sair da prisão logo depois de cumprida a pena imposta pelo Tribunal era ingressar numa realidade hostil e agressiva, onde raramente as famílias os recebiam de regresso e ninguém lhes oferecia trabalho, assim que era revelada a sua condição de ex‐condenados. Embora existissem empresas que aderiam à reserva de vagas para eles, continuavam a ser delinquentes e, perante qualquer acontecimento irregular, as suspeitas recaíam sempre sobre eles.
A minha primeira pergunta, quando comecei a trabalhar com estas pessoas, foi: “quem são vocês, o que são vocês?” Não tinham resposta. Não sabiam se eram ou não cidadãos, ou se tinham perdido essa condição como consequência do delito cometido, tal o grau de exclusão vivido e vivenciado. Não podiam sequer considerar‐se seres humanos.
Numa fase posterior, pedi que falassem dos problemas que viviam na prisão. Depois de os apresentarem, perguntei‐lhes sobre o que faziam ou podiam fazer para resolver esses problemas. Mais uma vez, a limitação paralisante de que nada podiam fazer pelos problemas estruturais da vida na prisão. Eles eram presos, para além do sistema social, dos preconceitos sociais e, fundamentalmente, da perda absoluta da auto‐estima. Para eles, existiam sempre limitações que os impediam de fazer alguma coisa para melhorar a qualidade de vida na prisão.
Questionados sobre se as pessoas “livres”, que não estavam presas, tinham limitações, concordaram que sim, que todos tínhamos limitações na abordagem das situações da comunidade. Poder pensar, falar e discutir sobre os problemas da comunidade carcerária era o primeiro passo. Depois, poder criar opções que atendessem a possibilidade das suas acções seria o segundo.
Legitimá‐los na sua identidade, na sua capacidade de transformação da realidade, era o objectivo que eu, como mediador para uma comunidade participativa, devia realizar.
Os mediadores que estavam envolvidos neste projecto captaram perfeitamente o trabalho a ser desenvolvido, de diálogo com os outros internos, para os encorajar a participar, a discutir e a assumir a responsabilidade de enfrentar as questões que os impediam de viver melhor e de lhes dar soluções possíveis.
Tinham assim acrescentado, ao trabalho que já realizavam com os conflitos interpessoais, o trabalho com e na comunidade, para conseguir a participação responsável de todos na análise e abordagem dos problemas da vida em comum.
Soube que às mediações entre internos estão já a somar mediações entre os internos e as suas famílias. Esta é a excelente experiência de Hermosillo(2) que se está a estender a outros estados do México e a outros países da região.
EM SÍNTESE: A OPERATIVIDADE
É fundamental que qualquer acção que se realize numa prisão conte com a aprovação das autoridades nacionais e do estabelecimento onde se desenvolverá a experiência. Para tal, considero necessário:
1) Realizar uma sessão explicativa do projecto, do funcionamento do procedimento da mediação e dos seus conceitos fundamentais, para as autoridades do sistema prisional.
2) Contando com a autorização devida, realizar sessões mais desenvolvidas para as autoridades das prisões regionais, apresentando a medição, seus conceitos e o programa proposto para ser desenvolvido na ou nas prisões que solicitem os nossos serviços.
3) Depois de convocados pelas autoridades da ou das prisões que desejem implementar o programa de mediação, elaborar com estas um plano de acção que contemple a realidade da instituição.
4) Organizar encontros com os guardas, para conhecer a sua realidade, os seus problemas e, a partir daí, transmitir‐lhes os conceitos sobre conflito e abordagem dos conflitos propostos pela mediação. Também aqui é necessário enfrentar o cristalizado conceito antinómico que opõe guardas e reclusos. Sem perder a dimensão policial da função, é possível desenvolver atitudes cooperativas em que o respeito e a sensibilização consigam unir os objectivos de se alcançar uma melhor qualidade de vida que substitua o permanente alerta defensivo e agressivo.
5) Organizar encontros com os internos, para apresentar os conceitos da mediação e convidar aqueles que se mostrarem interessados a aprofundar esta matéria. Os encontros devem ser vários e espaçados, para que os internos que estiveram presentes os comentem com outros e lhes divulguem a possibilidade de também participarem.
6) Formação, para os internos que desejem participar, sobre conflitos e abordagem pacífica dos mesmos, bem como sobre comunicação, negociação, escuta, cooperação, respeito, responsabilidade.
7) Formar, como mediadores, aqueles presos que desejem actuar como mediadores internos dos seus colegas.
8) Organizar um centro de mediação, com atendimento feito pelos mediadores formados, supervisionados pelos professores.
9) Organizar acções de divulgação, realizadas pelos mesmos internos que participaram nos cursos.
10)A capacitação de mediadores para uma comunidade participativa, para convocar todos os internos a trabalhar no debate das questões que fazem a vida na prisão, e assim atender essas questões de forma satisfatória para todos os que integram a organização prisional.
11)O seguimento das actividades a serem desenvolvidas por internos e guardas, assim como dos mediadores entre pares.
12)A renovação do ciclo de aulas para principiantes, contando com a colaboração dos presos já capacitados.
Este resumido esquema de acção, síntese do trabalho com organizações, com escolas, com comunidades e da experiência com prisões já apresentada, é apenas uma orientação que deve sempre atender a realidade de cada centro prisional (a das autoridades, a dos guardas e a dos internos).
É conveniente contar com o apoio das organizações governamentais e não governamentais da região e da cidade, para uma correcta divulgação do trabalho a ser realizado e assim neutralizar possíveis ataques de censura pela incompreensão do que se pretende conseguir.
Também seria interessante complementar a formação em mediação com outras matérias que contribuam para o desenvolvimento pessoal dos presos, bem como para o desenvolvimento de habilidades que lhes permitam uma melhor preparação profissional para enfrentarem o retorno à sociedade.
1 Revista “Mediadores en Red”, Buenos Aires, Argentina.
2 Os responsáveis deste magnífico trabalho são o Dr. Jorge Pesqueira Leal e o Dr. Javier Vidargas, do Instituto de Mediación de México.
Juan Carlos Vezzulla, Psicólogo, Mestre em Serviço Social, Doutorando em Direito e Sociologia. Co-fundador e Presidente Científico dos Institutos de Mediação e de Arbitragem do Brasil e de Portugal.
Lisboa, 17 de Maio de 2009
Fonte: Gabinete para a Resolução Alternativa de Litígios. Newsletter 4/2009 - Abril.
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