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22 de fev. de 2009
Entrevista - Padre Marcos Passerini
A Campanha da Fraternidade de 2009 adotou como tema a Segurança Pública. Nesta entrevista, o coordenador da Pastoral Carcerária do Ceará, padre Marcos Passerini, faz questionamentos sobre valores como ética, justiça, misericórdia, perdão, numa realidade que teima em investir em violência para combater violência
Por que segurança pública foi o tema escolhido para a Campanha da Fraternidade?
O tema é “Fraternidade e Segurança Pública” e o lema é “A Paz é Fruto da Justiça”, uma referência bíblica ao profeta Isaías. Geralmente, os temas são escolhidos pelos bispos, na conferência episcopal e também sob influência da sociedade. Esse tema conseguiu vingar graças a um abaixo-assinado nacional. A realidade exige uma reflexão em profundidade. É bom frisar que a Campanha da Fraternidade não é sobre a violência ou segurança, mas “Fraternidade e Segurança Pública”. O texto base podia ser até mais contundente a respeito das políticas públicas, que são umas das causas do crescimento assustador da violência. Percebe-se, andando nas áreas de risco, onde mais falharam estas políticas.
Quais são os principais objetivos da Campanha?
Abrir um grande debate sobre a segurança pública porque, quando a sociedade é refém do medo, perde a capacidade de analisar as causas da violência. Para nós, cristãos, é importante olhar o problema da segurança e da insegurança a partir de valores evangélicos em contraponto ao individualismo, à falta de ética, ao consumismo desenfreado, ao apego aos bens materiais, à falta de solidariedade, de misericórdia e de perdão. Temos, como Igreja Católica, a obrigação de apresentar à sociedade valores de justiça, solidariedade e, a partir desses valores, fazer uma reflexão. Ajudar as pessoas a identificar o grau de violência, que está dentro de cada um (somos vítimas e agressores ao mesmo tempo), e o grau de violência nas relações interpessoais e familiares.
Quais são as causas dos crimes em família?
A maioria dos crimes de abuso sexual contra crianças e adolescentes é cometida no âmbito familiar. Com certeza há distorção de valores. A cultura machista tem todo o seu peso, sem excluir o avanço da dependência química de droga e álcool. Muitos assassinatos não são devido a assalto à mão armada, mas, brigas de mesa de bar, de torcidas, movidas a álcool e não só à paixão pelo esporte. A convivência social se quebra com muita facilidade. Também o estresse, não só pela vida moderna, mas, pela falta de tudo. Desemprego, preocupação com família, afeta a mente de qualquer pessoa, afeta a estrutura psicológica, afetiva, emocional.
Como a problemática das drogas pode ser enfrentada?
É um problema sério e complexo, que envolve a parte mais frágil: o dependente químico. A dependência química não é caso de polícia. Como identificar o usuário do laranja, do grande traficante? Por outro lado, há a complexidade do tráfico nacional e internacional, que é muito ligado ao crime organizado, à corrupção de certa polícia, à falta de ética em certo mundo empresarial, a certo tipo de juiz que dá cobertura, à falta de ética na política, à corrupção. Eu me pergunto se o Estado tem vontade política, ou até mesmo condições de enfrentamento repressivo do grande tráfico, levando em conta toda essa corrupção. A dependência ao tráfico não é suficientemente combatida. Todo mundo sabe, na periferia, onde estão as bocas de fumo, quem é o pequeno e o grande traficante, quem mata quem. A cultura do medo faz com que ninguém se exponha. Porque acaba, como sempre, caindo sobre o mais fraco. Haja vista o Presídio Feminino Auri Moura Costa, onde a maioria das mulheres está enquadrada por tráfico sem nenhum perfil de traficante.
O senhor acredita que o enclausuramento por medo da violência piora a qualidade das relações humanas?
Com certeza fragiliza as relações. Fragiliza a família porque cada um se fecha diante do “micro” e do “macro”. Inverte seu tempo, sua afetividade diante de um computador, uma televisão. A própria informática e a própria televisão se aperfeiçoam cada vez mais no aliciamento, na sedução das pessoas, e isso acontece com a criança ainda pequena, com o adolescente, o jovem. A fragilização começa no âmbito familiar, que não busca segurança afetiva, emocional. Enclausuramento significa também muros altos, cercas elétricas, sistema eletrônico. A quem interessa hoje a insegurança? Nós sabemos que o maior investimento não é na segurança pública, mas na privada. A quem interessa isso? A quem interessa criar o pânico na sociedade? Alguns meios de comunicação, infelizmente, alimentam a psicose da violência. Não estou negando a violência. Mas quantos se aproveitam disso? Quantos se projetam através dos meios de comunicação, aparentemente tentando defender a população, tentando oferecer segurança?
Como promover relações éticas quando a população vê, a todo momento, denúncias de corrupção?
Infelizmente, nós absorvemos aquela falácia de que o brasileiro é um povo pacífico, o que significa dizer que não rege, deixa acontecer. Quando a corrupção, a falta de ética e abusos em todos os sentidos chegam a esse extremo é difícil para o cidadão, acreditar que é possível reverter o quadro. A campanha também é um grito de esperança, de encorajamento para os cidadãos e cidadãs de boa vontade, que acreditam que outro mundo é possível, que outra segurança pública é possível e que, para isso, é preciso muito mais articulação entre as forças sociais, hoje muito fragilizadas. A sociedade deve começar a aprender que não basta a simples denúncia ou a simples revolta contra a corrupção eleitoral, no âmbito interpessoal, no âmbito familiar, numa mesa de bar, sem deslanchar para um compromisso de articulação. Tem que acordar as igrejas, que estão muito distantes dos problemas sociais, que estão se fechando no sagrado, do sobrenatural e deixam o barco andar. Graças a Deus, no Ceará, está se recuperando a importância e a eficácia do Ministério Público.
Onde investir, prioritariamente, para melhorar a segurança pública?
Parece até chavão dizer que tudo parte da educação. Não significa um colégio a mais ou um colégio a menos, uma creche a mais ou uma creche a menos. Em quais bairros 87 creches foram fechadas recentemente em Fortaleza? Lá exatamente onde a população sofre a violência, a insegurança. Educação não é só colégio. Educação é a praça pública, educação do cidadão, da criança, do adolescente, da pessoa adulta, da família, da vizinhança, educação ambiental. Educação é também da Guarda Municipal, da Polícia Cidadã, que tem um histórico de séculos de repressão como força armada para proteger o patrimônio (e patrimônio das classes mais abastadas). Segurança é pública quando ela é para toda a população, porque todo cidadão se sente responsável pela segurança pública. Quem discute (e com quem) o porte de armas? Não se trata, como dizem, de “desarmar o cidadão para armar o bandido”. Bandido é um fora da lei. Não vamos combater a insegurança jogando todas as nossas esperanças, as nossas preocupações, as nossas saídas somente num maior armamento. Quem treina hoje a nossa polícia para usar as armas? No fundo, a Campanha tenta também desmistificar essa coisa de que a insegurança se vence com violência, no fundo uma cultura da guerra. E, quando não é na arma, é na “porrada”, no pontapé. E a sociedade também entra nesse clima. Alguém grita “pega ladrão!”. Todo mundo corre atrás, não sabe quem é; de onde vem, e mata de “porrada”, lincha. E ninguém chama isso de violência! É uma espiral que precisa ser quebrada. E não é fácil. E não é de hoje. Nós estamos pagando pela falta de cuidado que vem se arrastando há muitas administrações.
Qual a sua análise sobre o preconceito sobre a defesa dos direitos humanos?
A quem interessa educar a população ao desrespeito, à desconfiança, ao deboche? Há programas da mídia onde se faz chacota dos direitos humanos. E onde se faz chacota, no meu entender, está nivelando por baixo, qualquer que seja o cidadão que cometa um ilícito e se torne um bandido, seja ele deputado, governador, presidente, juiz ou delegado de polícia. E a população repete os chavões que saem da boca de certos comunicadores. Graças a Deus nem todos os comunicadores estão nesse patamar! Eu escutei muito delegado dizendo na televisão: “ainda aparece um ‘filho da égua’ dos direitos humanos para defender esse aqui”. Um dia mostraram um cadáver boiando numa lagoa e o repórter, apontando, “esse aí não vai fazer falta para seu ninguém, só para a mãe dele”. Diante disso, os próprios movimentos dos direitos humanos se vêem fragilizados e estão encolhendo. Tudo isso vai ao encontro de uma sociedade amedrontada, apavorada, que se sente até quase que gratificada: “ainda bem que alguém que pensa como eu”. Ela não reflete: “eu estou pensando como a televisão”. São necessárias medidas enérgicas, não só a teimosia do movimento de direitos humanos, mas a intervenção do Judiciário. Não é só questão de programas policiais, há DVDs, filmes, documentários, Internet, jogos de violência, armas de brinquedo.
E como fica o Judiciário diante de tudo isso?
O judiciário hoje é refém de uma sociedade que grita contra a impunidade. Já escutei de juízes: “a sociedade não tolera mais impunidade”. Mas está se referindo a quem? À impunidade do assaltante, do estuprador, do arrombador de carro. Os juízes também têm que repensar a cultura do judiciário, muito punitiva, e começar a se discutir no Brasil, a justiça restaurativa. O juiz manda para o presídio e parece que está resolvido o problema. O presídio procura executar a pena por manter segregado quem tem que ficar segregado e faz de conta que, assim, está dando segurança à sociedade. E nós estamos vendo a insegurança de dentro para fora e de fora para dentro do presídio. Sem pensar que quem está preso depois vai sair. Vai voltar para a sociedade. Graças a Deus ainda tem uns e outros que, apesar da falência do sistema, conseguem sair de cabeça erguida. Mas uma minoria não volta a reincidir e se discute que a pena não restaurou a justiça. O infrator rompe, cria problemas, mata, cria traumas na vítima ou nos familiares da vítima. Mas, também, quebra consigo mesmo, com sua identidade de cidadão, de homem, que pensa, que tem sentimentos. A justiça manda para a prisão, mas não ajuda ao infrator a reconhecer que errou, que é culpado, e, enquanto não toma consciência de que errou, pode repetir esse erro. A simples prisão não resolve, pelo contrário, gera muita revolta. Só uma educação profunda, personalizada do infrator pode resgatá-lo internamente e isso a cadeia não faz. Falta estrutura.
Como o senhor analisa a aplicação das penas alternativas?
O Ceará foi pioneiro. A primeira Vara de Execuções de Penas Alternativas, no Brasil, começou aqui. Quando a pena alternativa é bem aplicada e acompanhada, dá resultados. Isso não depende somente do juiz da Vara, do psicólogo, da assistente social. Quem está disposto a receber, no seu estabelecimento um apenado, seja qual for o crime? Qual é o diretor de escola pública que está disposto a receber apenados? Não é só para trabalhar, mas para acompanhar. A pena alternativa é um momento de reeducação, não de castigo. Se for vista como castigo, não muda nada. Tem-se que avançar com o sistema de penas alternativas, que já está fazendo um bom trabalho, assim como a sociedade tem que se abrir a colaborar e reconhecer que esse homem e essa mulher são membros da nossa sociedade, e todos somos responsáveis.
O Diário do Nordeste. Opinião. MARISTELA CRISPIM. Repórter.
“É chegada a hora de inverter o paradigma: mentes que amam e corações que pensam.” Barbara Meyer.
"A educação e o ensino são as mais poderosas armas que podes usar para mudar o mundo ... se podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar." (N. Mandela).
"As utopias se tornam realidades a partir do momento em que começam a luta por elas." (Maria Lúcia Karam).
“A verdadeira viagem de descobrimento consiste não em procurar novas terras, mas ver com novos olhos”
Marcel Proust
Livros & Informes
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