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27 de out. de 2008

Projetos-piloto de Justiça Restaurativa no Brasil são marcados por parceria entre Judiciário e Educação

por Juliana Rocha Barroso

As sementes da Justiça Restaurativa já estavam lançadas. Alguns magistrados desenvolviam projetos localmente, fora criado, em 13 de agosto de 2004, o Núcleo de Estudos em Justiça Restaurativa na Associação dos Juízes dos Estado do Rio Grande do Sul (Ajuris), espaço que passou a reunir pessoas e promover leituras e reflexões sobre o tema. Mas o grande impulso às iniciativas aconteceu quando, em 25 de maio de 2005, o Ministério da Justiça (MJ), através da Secretaria de Reforma do Judiciário (SRJ), firmou um acordo de cooperação técnica internacional com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), denominado "Projeto BRA/05/009 – Promovendo Práticas Restaurativas no Sistema de Justiça Brasileiro".

O 11º Período de Sessões da Comissão de Prevenção do Crime e Justiça Penal, promovido pelas Nações Unidas, de 16 a 25 de abril de 2002, na Áustria, teve como tema principal a Reforma do Sistema da Justiça Penal. Como resultado foi publicada uma declaração, em que foi decidido a todos os países-membros o estabelecimento de diretrizes e critérios de aplicação de programas de justiça restaurativa pelos respectivos governos. “Nesse sentido, o PNUD, como parte do sistema Nações Unidas, apoiou a SRJ na adaptação do modelo de justiça restaurativa ao contexto brasileiro, no escopo das ações de ampliação do acesso à Justiça”, declarou o órgão.

Com o orçamento de noventa mil dólares, foram apoiados três projetos-piloto no Brasil: na Vara da Infância e da Juventude da Comarca de São Caetano do Sul (SP); na 3ª Vara da Infância e da Juventude de Porto Alegre (RS), com competência para executar as medidas sócio-educativas; e no Juizado Especial Criminal do Núcleo Bandeirantes, em Brasília (DF).

Implementados com base nos princípios da JR, cada projeto fez uso de práticas restaurativas distintas. Nos dois primeiros, a JR foi aplicada em parceria com a Secretaria de Estado da Educação (SEE), em casos envolvendo crianças e adolescentes. O procedimento adotado foi o círculo restaurativo. A capacitação dos facilitadores foi realizada pela organização Comunicação Não-Violenta (CNV-Brasil) e das lideranças educacionais, pelo Centro de Criação de Imagem Popular (CECIP). Em Brasília, a JR foi aplicada a crimes de menor potencial ofensivo praticados por adultos. A Escola da Magistratura do DF realizou a capacitação em conhecimentos teóricos e práticos no procedimento de mediação vítima-ofensor, aplicada pelo juiz André Felipe Gomma de Azevedo.

Além dos pilotos, outra parte da execução do projeto teve cunho teórico e se deu com a publicação de Justiça Restaurativa – Coletânea de artigos, primeiro livro em português com uma compilação de idéias e reflexões sobre justiça restaurativa de autores nacionais e internacionais. Outras duas publicações relacionadas saíram na seqüência: Acesso à Justiça por Sistemas Alternativos de Administração de Conflitos (SRJ/MJ – 2005) e Novas direções na Governança da Justiça e da Segurança (SRJ/MJ – 2006). SRJ e PNUD também realizaram, em junho de 2005, a Conferência Internacional Acesso à Justiça por Meio de Alternativas de Resolução de Conflitos.

Para promover capacitação, pesquisas e avaliação, o Projeto BRA/05/009 passou por uma revisão em dezembro de 2005, incluindo como agências implementadoras a Ajuris, a Escola da Magistratura do DF e o Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para a Prevenção do Delito e Tratamento do Delinqüente (Ilanud). A Ajuris realizou uma pesquisa de documentação e avaliação sobre a implementação das práticas de JR no âmbito da execução de medidas socioeducativas na cidade de Porto Alegre e o Ilanud realizou a avaliação dos três projetos-pilotos. Com a assinatura do "Projeto BRA/05/036 – Fortalecimento da Justiça Brasileira" foi realizada a capacitação, a supervisão e a avaliação dos operadores de práticas restaurativas nos três projetos (confira matéria sobre avaliações dos pilotos de JR).

De 2003 a 2005, Renato Campos Pinto de Vitto licenciou-se da Procuradoria do Estado de São Paulo para assessorar os, então, ministro da justiça Márcio Thomaz Bastos, e o secretário da SRJ, Sérgio Renault. Um dos responsáveis pela criação da Defensoria Pública de São Paulo, atualmente ele é coordenador geral de administração do órgão e presidente da Comissão de Justiça e Segurança do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). Renato de Vitto conta que a discussão sobre justiça restaurativa surgiu por intermédio do Instituto de Direito Comparado e Internacional de Brasília (IDCB), presidido na época por Renato Sócrates Gomes Pinto (confira entrevista). “Na época, eles trouxeram uma pesquisadora inglesa e outra neozelandesa, junto com o ministro da justiça da Nova Zelândia para fazer um debate no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e eu fui representando a Secretaria. Foi quando eu comecei a ter contato com o tema e vi que ele convergia para muitos das idéias de inovação que motivavam a SRJ.”

De Vitto começou a contatar pessoas da Nova Zelândia, país que institucionalizou a JR ao sistema de justiça em 1989, e fez parte de uma delegação convidada por aquele governo para conhecer seus programas estatais e privados de JR. Envolvido na formulação do projeto BRA/05/009, ele conta que o objetivo era desenvolver ações para difundir o conhecimento sobre esse modelo. “Eu era o responsável por este projeto na SRJ. Era tudo muito novo, algo que estava literalmente em construção, até o conceito adequado à realidade brasileira. Mas estávamos com muita responsabilidade e moderação para não vender ilusão. A gente tinha a idéia de que agregava um instrumento que poderia ter uma utilidade social grande, mas sempre considerando que era uma experiência importada de países que tem um sistema jurídico bastante diferente do nosso e que aquilo não seria a panacéia para os problemas do direito criminal e da situação carcerária no país. Mas era uma experiência que valia a pena o investimento”, conta.

Ele explica que a escolha dos três projetos-piloto se deu com base na investigação de pessoas que já eram comprometidas com o tema e já desenvolviam ações nesse sentido. Renato de Vitto lembra que a emenda da Reforma do Judiciário criou uma Escola Nacional de Magistratura para juízes que seria gerida pela JR. “Quando a gente está tratando de um projeto piloto você está trabalhando com um universo bem restrito. Nosso grande desafio seria trabalhar isso numa escala grande. E o nosso problema é que muito pouca gente qualificada para capacitar. Então a idéia de envolver uma Escola Nacional, vinculada ao Tribunal Superior, seria criar um nicho de reprodução daqueles conceitos, um kit com ferramentas básicas para que cada juiz pudesse se aprofundar, buscar uma capacitação e, quem sabe, implementar um projeto com a sua cara”.

O defensor não acredita a JR como solução para os problemas carcerários. “Tenho muita reserva quanto a isso. É que às vezes eles se valem da idéia que a mediação pode acabar com o problema da lentidão do processo judicial. E, normalmente, são aqueles casos que envolvem os pobres. Todo cidadão tem direito a acessar a justiça formal, tal qual conhecemos, mas o interessante é você criar alternativas para que as partes não dependam única e exclusivamente dela. É criar o que alguns teóricos chamam de sistema multiportas, que pode atender melhor determinadas situações.” Mas Renato de Vitto acha que nem toda espécie de criminalidade é passível de ser submetida à JR, como a criminalidade organizada ou os próprios crimes de colarinho branco. “Vejo como muito eficaz e eficiente na resolução de conflitos interpessoais, que é boa parte da criminalidade, eu arriscaria dizer até que, em termos quantitativos, é a maior parte do que se verifica.”

De Vitto afirma ser cético quanto à possibilidade de impor JR como modelo. Ele também fala sobre o custo de um sistema restaurativo. “Tenho muitas dúvidas quanto ao custo operacional. Falar que essa é mais barata do que a tradicional não é verdade. A estrutura de pessoal e material que gira em torno do programa de justiça restaurativa na Nova Zelândia é muito grande. Se a gente considerar que lá eles têm 4 a 5 milhões de habitante e aqui temos quase 200 milhões. Do ponto de vista operacional há dificuldades, mas acho que há espaço para esse novo paradigma. Uma coisa que tenho certeza é que, se bem empregado, o modelo agrega um grande potencial de satisfação das partes. O grande potencial da justiça restaurativa está em justamente nisso. É menos traumático. O revolucionário da JR está exatamente no dar um xeque a essa concepção retributivista, punitiva, vingativa que a justiça criminal traz, falando: existe alternativa para isso.”

Hoje o coordenador da JR na SRJ, Marcelo Vieira de Campos, também assessor especial do atual secretário, Rogério Favreto, garante que a missão do órgão é aprimorar políticas voltadas à pacificação de conflitos, propondo mecanismos sem deixar de lado as normas legais vigentes. Ele destaca, contudo, que dentro do ordenamento jurídico nacional não há como tratar de um crime sem a presença de alguns Poderes. “O Judiciário é um deles, já que a JR trata de uma situação pós-infração. Alguns países possuem instrumentos normativos que a regulamentam, de modo que habilita dentro do contesto legal daquela localidade a atribuição de outros órgãos para promover a JR.”

Hoje a SRJ dialoga com vários setores a possibilidade de replicação em outros Estados. “Nesse ano a SRJ realizou um ciclo de debates sobre a JR trazendo como palestrante o professor estadunidense Howard Zehr (confira entrevista), um dos pioneiros na JR no mundo”.

O secretário Rogério Favreto diz que a proposta é tratar a justiça restaurativa como uma política pública permanente. “Estamos tendo cuidado, junto com os parceiros, na ampliação deste debate e na replicação destas experiências. A partir das conferências deste ano, vamos fazer uma publicação para a orientação das pessoas interessadas. O Ministério da Justiça daria o aporte tanto da publicação desse material, como também em viabilizar alguma assistência técnica e orientação para aqueles que queiram se envolver na ampliação da proposta de justiça restaurativa.”

Hoje, a SRJ apenas acompanha o desempenho dos projetos-piloto. “Em São Caetano, por exemplo, eles acabaram buscando outras parcerias estaduais. Não existe a necessidade de repassar recursos porque o objetivo inicial foi a estruturação e a implantação e nossa parceria já deu conta disso”, afirma o secretário. E fala sobre o apoio da secretaria a novas demandas, especialmente com aporte teórico. “Não há impedimento em apoiar outros projetos, mas achamos que neste momento o fundamental é um investimento grande no sentido de viabilizar essa rede, de reunir, de fazer esse debate. Queremos canalizar nossos investimentos nessa orientação porque é um tema mais complexo e que tem resistência, é um tema novo, que rompe com alguns paradigmas. Não é fixar uma linha doutrinária, é, sim, dar suporte prático e teórico de como alguém pode se assessorar para implantar esse sistema. No Ministério da Justiça já sinalizei aos setores para que, depois, a gente possa também levar, por exemplo, ao Conselho Nacional de Justiça para que, como um órgão que pensa as políticas e diretrizes, possa avaliar e fazer recomendações à Justiça no sentido da utilização desses métodos”, conclui Favreto.

Outros projetos estão em atividade ou desenvolvimento pelo País. Em alguns casos elas não se intitulam como justiça restaurativa, mas têm em sua base de fundamentos os mesmos princípios. Sem a pretensão de abarcar todas as iniciativas, esta série apresenta algumas. Confira: Joinville (SC), Belo Horizonte (MG), Recife (PE), Vila Céu do Mapiá (AM) e Campinas e Diadema (SP).

Fonte: Senac - Setor 3
Serviço :
Secretaria de Reforma do Judiciário (SRJ)
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD)
Centro de Criação de Imagem Popular (CECIP)
Fundação para o Desenvolvimento da Educação (FDE)
Instituto de Direito Comparado e Internacional de Brasília (IDCB)

Iniciativa em Brasília optou pela mediação como procedimento restaurativo

O envolvimento do maranhense Asiel Henrique de Sousa, Juiz de Direito do Juizado Especial Criminal do Núcleo Bandeirantes, em Brasília (DF), com os procedimentos restaurativos teve início no ano de 2005, quando participou de seminários e de conferências sobre o tema.

Ele explica que um processo restaurativo é aquele em que o sistema de justiça devolve às partes uma parcela do poder que originalmente tinham de resolver o problema. “O que a JR traz de novidade é um norte teórico e metodológico para a prática da Justiça criminal, que de algum modo já era feita na prática, desde 1995, pela Lei dos Juizados Especiais Criminais (Lei 9009/1995). O que se constata é que essa proposta teórica e esses métodos têm uma aplicação potencial em um âmbito muito maior do que o previsto nesta. É o caso do Estatuto da Criança e Adolescente, cujo procedimento criminal prevê a exclusão do processo nos casos de remissão.”

Sousa é o coordenador do Projeto Justiça Restaurativa, um dos três pilotos apoiados pela Secretaria de Reforma do Judiciário (SRJ), do Ministério da Justiça, e pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), dentro do escopo do Projeto BRA/05/009 – Promovendo Práticas Restaurativas no Sistema de Justiça Brasileiro. Como parceiros executivos do projeto estão o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT), o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios e a Defensoria Pública do Distrito Federal.

Ali, a JR foi aplicada a crimes de menor potencial ofensivo praticados por adultos. O juiz diz que esse aspecto estabelece uma diferença metodológica importante em comparação com os outros dois pilotos. “No que diz respeito aos crimes da juventude, há uma rede de proteção e de apoio já estabelecida e consolidada, o que não ocorre com relação à criminalidade e conflitualidade em geral.”

Em função disso, entre os procedimentos restaurativos propostos pela Resolução 2002/12, da Organização das Nações Unidas (ONU), o piloto de Brasília escolheu a mediação vítima-ofensor. Ele aponta como diferença fundamental entre ela e o círculo. “Os problemas que envolvem a infância ou outros segmentos, como algumas minorias, talvez exijam a participação mais efetiva de redes nativas. Optamos pela mediação, com o diferencial de que, nesse processo, há também espaço para a participação comunitária, mas a comunidade primária. Ou seja, aquelas pessoas com quem os envolvidos diretos têm uma relação significativa. E a presença dessas pessoas não desnatura a mediação vítima-ofensor.”

O juiz acredita que um sistema de justiça restaurativa que faria bem ao Brasil se apresentaria como subsidiário ao modelo retributivo (baseado na punição). “Portanto, não há de ser universal, ou seja, não deve ser aplicado a todos os casos nem em todas as circunstâncias.”

Sousa acredita que a JR pode ser vista como alternativa ao encarceramento, em alguns casos de crimes de médio potencial ofensivo, em que seja possível o aprisionamento. “Além disso, pode ser vista também como instrumento de pacificação das relações sociais afetadas pelo crime, aí considerados os envolvidos no evento, primários e secundários.”

Em relação à justiça de adultos, trabalhada no projeto-piloto de JR em Brasília, ele diz que a proposta da JR desafia a ampliação do espaço de consenso para crimes de médio potencial ofensivo e abre espaço para a participação social na solução dos conflitos-crime assim como abriu para as infrações da juventude.

A supervisão do trabalho está a cargo de uma servidora do Tribunal de Justiça (TJ), que se reporta ao juiz e ao promotor, quando necessário. “Inicialmente trabalhamos com voluntários que foram capacitados para o programa. O modelo demanda algum aperfeiçoamento, alguma medida que vincule mais fortemente o voluntário”, conta.

No início, havia 18 facilitadores voluntários. Hoje, são quatro servidores do TJ dedicados exclusivamente ao projeto. A comunicação e troca de experiências acontecem em reuniões periódicas entre os facilitadores.

De 2005 a 2008, foram concluídos 91 processos, dos 101 encaminhados ao projeto. “Sempre ocorrem pré-encontros, ou reuniões preparatórias. Às vezes, mais de um para cada parte em conflito. Do ponto de vista qualitativo, podemos constatar uma melhor percepção de justiça na resolução dos problemas e as pessoas se apropriando mais dos seus direitos e deveres.”

Para ele, a questão de tornar JR componente de política pública parece missão acima das propostas dos projetos-piloto. O juiz não acredita ser possível nem recomendável a concepção de programas de justiça restaurativa autônomos em relação ao sistema de justiça. “Ao menos no que diz respeito aos fatos tipificados na lei penal. A instituição da justiça pública está muito ligada às instituições e ao inconsciente coletivo, de modo que não será para tão breve qualquer medida nesse sentido”, justifica.

Capacitação

Professor da Universidade de Brasília (UnB), o ex-procurador federal e advogado, André Felipe Gomma de Azevedo deu um treinamento para juízes no TJR e, em função disso, se encantou com a profissão. Há seis anos, prestou concurso para a Magistratura na Bahia e passou. Estudioso do campo de mediação penal, Gomma foi responsável pela capacitação inicial dos mediadores do piloto de Brasília.

Em 1998, formou um grupo de pesquisa em mediação na UnB para desenvolver instrumentos pedagógicos passíveis utilizados por outros tribunais, órgãos e quaisquer entidades que desejem desenvolver projetos. “Meu contato com justiça restaurativa foi por intermédio com um dos processos restaurativos.”

Gomma aponta que a JR pode e deve ter o envolvimento com a comunidade. “A grande questão nossa no Brasil é que nós temos muitas dificuldades de definir quais são os representantes das comunidades”, revela.

Gomma conta que a linha teórica que orientou o processo de capacitação foi a do professor Mark Umbreit, diretor-fundador do Centro para a Justiça Restaurativa e Pacificação, e do Instituto Nacional de Formação em Justiça Restaurativa, ambos da Universidade de Minnesota, nos Estados Unidos. “Acho que o manual dele é de mais fácil aplicação. Como parte do pacote do treinamento, fizeram exercícios simulados, casos reais que nós transformamos para saber o que aconteceria se estivessem naquele contexto.”

O juiz explica a diferença entre os termos facilitador e mediador. “Facilitador foi o utilizado pela resolução da ONU para definir o compositor na JR. Dentro do processo restaurativo existem as espécies de procedimento. Ao chamar de facilitador ou mediador a gente está se referindo à mesma pessoa, mas na primeira é uma referência ao gênero, o processo, e na segunda à espécie, o procedimento chamado mediação.”

Para ele, no Brasil, a grande dificuldade é universalizar os programas. “Se eu fosse vítima de uma lesão corporal de trânsito hoje, não teria assegurada a possibilidade de passar por um procedimento restaurativo. Tenho isso como um programa universal, que dá acesso a um processo muito interessante, mas na prática existe exclusivamente para uma parcela muito pequena da população. É como se a gente tivesse um remédio ou um tratamento, mas que estivesse disponível a 0,5% da população.”

Ele aponta como grande desafio para isso é o envolvimento do voluntário qualificado no Poder Judiciário. Também defende que a JR não seja tratada como uma alternativa, mas como um complemento. “Alguns tribunais fora do Brasil contam com trabalhos voluntários de professores de universidades e assim por diante. No Brasil, existe a intenção da sociedade de ajudar o poder judiciário, mas ele tem questões administrativas que dificultam o envolvimento desses profissionais qualificados. É muito difícil para um administrador alterar práticas gerenciais tão consolidadas, como a não utilização de voluntários externos. À exceção dos Juizados Especiais, que usam a alunos como voluntários em muitos Estados, cujos resultados estão sendo bastante questionados.”

Também participou da implementação e execução do projeto-piloto a psicóloga, especialista em teoria psicanalítica, Adriana Barbosa Sócrates. A professora é membro-fundadora e integrante do conselho científico e consultivo do Instituto Brasileiro de Justiça Restaurativa (IBJR). Ela conta que seu envolvimento com a JR iniciou-se pelo contato com a Professora Gabrielle Maxwel, que esteve em Brasília para apresentar o modelo de JR da Nova Zelândia, em 2004.

Como consultora do PNUD no projeto de Brasília, Adriana presenciou etapas fundamentais da execução da prática restaurativa. “Com a experiência, pretendo escrever um livro A Justiça restaurativa na prática no Brasil: diretrizes e fundamentos, no qual quero expor os procedimentos utilizados compilados.”

A psicóloga foi convidada pelos juízes Asiel Sousa e Ben-Hur para compor a equipe e coordenar a implementação e execução do projeto, após a avaliação da proposta de capacitação que ela havia submetido à SRJ. “A capacitação ocorreu de forma continuada, ou seja, os facilitadores foram selecionados e tiveram 60 horas de curso sobre a ferramenta proposta pelo professor André Goma. No decorrer da execução eram realizadas supervisões temáticas e teóricas de acordo com as necessidades da prática dos facilitadores.” Ela aponta, ainda, os critérios utilizados na seleção dos facilitadores: disponibilidade psíquica, emocional, temporal, conhecimento sobre o tema ou similar.

Caso real

Antônio* convidou alguns amigos para a festa da virada de 2004 para 2005, em sua casa, em Brasília. Não gostou quando alguns rapazes começaram a fumar maconha. “Acho que foi falta de respeito”, diz o jovem, hoje, com 22 anos.

Outro mal-entendido foi provocado quando um deles conversou com a namorada do outro. Houve discussão e agressão física. Durante a briga, alguns objetos sumiram: óculos, corrente de prata e celular.

O rapaz agredido foi levado ao Instituto Médico Legal (IML) com ferimentos no rosto. Estavam envolvidos, de um lado, Antônio e Samuel*, do outro, dois irmãos e um amigo deles, desconhecido do dono da casa. “Eu fui direto brigando, também errei neste ponto. Todo mundo querendo entrar, só não teve mais briga porque o pessoal separou”, recorda Antônio.

No dia seguinte, ele e Samuel foram ameaçados de morte pelos irmãos e registraram ocorrência na delegacia. Antônio diz que Samuel se envolveu na briga. “Creio que ele não bateu em ninguém, mas falaram que sim, mas acho que ele entrou só para separar.”

Hoje com 23 anos, Samuel conta que ele já estava embriagado quando separaram a confusão e o rapaz que agrediu veio em sua direção para brigar novamente com o dono da casa, que estava sendo acalmado por outras pessoas. “Nesse momento, achei que ele ia me agredir e reagi antes, me precipitando.”

No dia seguinte, ele ficou em casa, depois de registrar a ocorrência na delegacia. “Fiquei trancado durante três ou quatro meses, pois temia algo acontecer comigo”, revela.

Em função dos Boletins de Ocorrência (BO) registrados pelas duas partes, o delegado elaborou Termo Circunstanciado (prática dos crimes de ameaça e lesão corporal) e encaminhou ao Juizado Especial Criminal do Núcleo Bandeirantes no 19/04/2005.

No dia 1º de agosto daquele mesmo ano, em uma audiência preliminar, juiz e Ministério Público, em comum acordo, sugeriram que o processo seguisse para o projeto de justiça restaurativa. “Um técnico, acho que se chama Leonardo, propôs esse projeto na audiência, explicou tudo na frente do juiz. Eles disseram que se a gente quisesse poderíamos entrar num acordo para tentar acabar com isso sem mais confusão”, recorda Antônio.

Informados sobre a possibilidade, eles optaram, voluntariamente, por esta forma de justiça. O processo ficou suspenso e, caso não houvesse um acordo restaurativo, seria devolvido à justiça tradicional. “Achei que seria uma ótima oportunidade de resolver a situação sem que precisasse de um futuro julgamento”, diz Samuel.

Depois de vários pré-encontros, privados e conjuntos, foi realizado, no dia 9/11/2005, o encontro restaurativo, de que participaram também os familiares dos envolvidos. Nele, foi elaborado pelas partes o Termo de Acordo Restaurativo, em que todos pediram desculpas reciprocamente e Antônio e Samuel assumiram a responsabilidade de restituir aos outros o valor referente aos objetos desaparecidos. O prazo para isto teve data marcada.

“Achei algo extraordinário, pois pude acreditar que existe outro jeito de se resolver um conflito sem precisar de uma pena. Me senti totalmente ouvido e aliviado, pois antes mesmo de um encontro das duas partes, percebi mudanças em todos nós envolvidos. Depois de uma primeira pré-mediação cheguei a fazer as pazes com o irmão do rapaz que eu agredi”, diz Samuel, revelando que, caso necessite, buscará este procedimento novamente.

No acordo, todos também se comprometeram a realizar uma campanha para arrecadação de alimentos, brinquedos e roupas para um abrigo de crianças carentes nas comunidades onde residem. “Esta sugestão foi dada pelos próprios familiares e foi prontamente aceita pelos jovens, com intuito de ampliar a visão de suas realidades e conectarem-se com as necessidades básicas das crianças, privadas de convivência familiar”, conta a psicóloga Helena Maria Costa, que atuou como mediadora no caso, junto de Leonardo Amorim e da supervisora de JR, Simone Republicano.

Helena, que está no Projeto de Justiça Restaurativa do Núcleo Bandeirantes desde 2005, conta que o acordo foi cumprido e anexado ao processo um termo de quitação da dívida, bem como o termo de quitação do compromisso com o abrigo. “Também foi realizada visita domiciliar e verificou-se que os rapazes cumpriram o acordo de boa convivência.”

O Juiz homologou o acordo e determinou, em 17/7/2008, que o processo fosse arquivado. “Ao final do encontro, todos se cumprimentaram. Houve abraços e choros. Este caso foi considerado restaurado pelas partes e seus familiares”, afirma Helena.

Ela explica que, em muitos casos, verifica-se que os envolvidos são vítimas e ofensores ao mesmo tempo. “Inicialmente, quando se registra uma Ocorrência Policial, o delegado distingue os papéis das partes. No Fórum, o MP pode seguir com o mesmo entendimento ou não.”

Samuel revela, avaliando o que aconteceu, que se enxerga mais como ofensor. “O fato de ter sido ameaçado foi por causa da agressão que cometi.” Já Antônio, diz que quando aconteceu a briga, se sentia ofensor e, ao mesmo tempo, vítima. “Porque a ameaça foi mais séria. Eles foram pessoalmente, correram atrás de mim”, diz. Hoje ele vê a situação de forma diferente. “No encontro me senti mais como agressor. Não que eu seja o motivador, mas poderia ter evitado, ter agido de outra maneira. Eu ajudei bastante isso a acontecer. Com certeza, aquele processo me ajudou a repensar como foi e que poderia ter acontecido de outra maneira.”

Samuel e Antônio aprovaram o projeto de JR. “Creio que todos puderam falar tudo que queriam. Eu estava aberto para ouvir e falei tudo também. Me senti aliviado, essa foi a sensação. Poder resolver tudo numa boa e, até hoje, não aconteceu mais nada”, afirma Antônio. E ele deixa a mensagem: “Não custa tentar, tentem que não vão se arrepender.”

* nomes fictícios para resguardar a identidade dos envolvidos

Serviço:
Grupo de Pesquisas e Trabalho em Resolução Apropriada de Disputas, da UnB
Assista aos vídeos:

A Oficina: uma mediação (forense) exemplificada (ano 2004)
O Reencontro de Helena: uma mediação vitima-ofensor exemplificada (ano 2006)

Fonte: Senac - Setor 3


Projeto-piloto de Porto Alegre propõe nova forma de olhar para as medidas sócio-educativas

por Alexandre Saconi

Nascido em 2005 como piloto do projeto Promovendo Práticas Restaurativas no Sistema de Justiça Brasileiro, o Justiça para o Século 21 mudou a forma de olhar a justiça voltada para crianças e adolescentes em Porto Alegre. Seu maior diferencial está no público alvo com que trabalha: jovens que estão cumprindo medidas sócio-educativas na Fundação de Atendimento Sócio-Educativo (FASE, responsável pelo cumprimento das medidas em regime fechado) e na Fundação de Assistência Social e Cidadania (FASC, responsável pela execução das medidas de meio aberto). Os atendimentos do projeto buscam despertar a consciência de todos os envolvidos para as conseqüências e proporções de seus atos.

Em Porto Alegre (POA), as práticas restaurativas são testadas desde 2002 e, a partir de 2005, são realizadas de forma sistemática junto à 3ª Vara do Juizado da Infância e da Juventude. Atualmente, conta com o apoio da UNESCO/Criança Esperança, do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da república (SEDH), Secretaria de Reforma do Judiciário (SRJ), da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (AJURIS), das Secretarias Estadual e Municipal de Educação, Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Segurança Urbana, além de outras instituições que defendam os mesmos objetivos do projeto.

Justiça na prática

Mas como funciona esse projeto? Partindo do princípio da valorização do diálogo entre as pessoas, criam-se oportunidades para que as pessoas envolvidas em um conflito, como ofensor, vítima, familiares e a comunidade possam ter suas necessidades próprias reconhecidas. Essa valorização favorece a construção do combate à violência e da consciência para lidar com as conseqüências deste tipo de ato. Para isto, a ferramenta escolhida foi a de círculos restaurativos, inspirada no modelo criado pelo professor Howard Zehr, e desenvolvidos na Central de Práticas Restaurativas do 3º Juizado Regional da Infância e da Juventude (CPR-JIJ).

Os círculos funcionam da seguinte forma: uma vez detectado o conflito e observada a possibilidade deste ser encaminhado a um círculo restaurativo, os funcionários da CPR designam um profissional próprio para coordenar o círculo do caso. Esse coordenador irá estudar o caso e realizar todas as etapas do processo restaurativo, começando pelo pré-círculo, quando entrará em contato com todas as partes envolvidas no ato infracional (o jovem, a família, vítima, comunidade, etc) e proporá que todos participem do círculo. Este processo é voluntário e não se realizará se alguma das partes não concordar em participar.

Para o jovem, o coordenador explica a importância do círculo e esta discussão pode, inclusive, mudar sua forma de conceber o próprio ato. Algumas vezes, o jovem tenta usar técnicas de neutralização, que tendem a revitimizar a pessoa que já foi vítima uma vez do ato infracional. Em um caso de roubo, por exemplo, seria a argumentação de que o fez porque a vítima é rica, e que isso ameniza sua culpa em todo o processo. Os coordenadores trabalham para explicar que isso pode causar um mal-estar na vítima, tornando o diálogo mais complicado. A família dele é convidada, por ser parte importante do seu processo de recuperação. Porém, a vítima pode não aceitar por medo de ser revitimizada. O profissional que entra em contato com ela argumenta sobre a importância de sua participação para uma restauração do relacionamento entre todos. A comunidade, que pode ser representada por uma ou mais pessoas que tenham se sentido afetadas direta ou indiretamente pela atitude do jovem, também é convidada para refletir sobre o seu papel e responsabilidade no processo.

Quando todos aceitarem participar, o círculo se realizará na CPR em uma data e horário adequado por todos. Cada um irá expor seu ponto de vista, suas necessidades, opiniões, etc. O objetivo é traçar um plano de ação para compensar os danos causados e promover mudanças que evitem a repetição do fato em questão. Um documento registrará a atitude que cada um se comprometeu a tomar. Este documento será revisitado na última parte deste processo, que é o pós-círculo, quando o coordenador desta atividade entrará em contato com todos os participantes do círculo para acompanhar a execução das metas traçadas anteriormente.

Desde 2007 a CPR vem praticando também os círculos familiares, que são realizados quando a vítima não aceita participar do círculo. Aqui, o diálogo ocorre entre os adolescentes e responsáveis que participam dos encontros, produzindo uma reflexão e identificação dos temas que o motivaram a cometer o ato infracional. Com isso, pode-se articular melhor as relações comunitárias de todos e levantar as demandas da rede de apoio que precisam ser trabalhadas.

Em seus dois anos de existência, a CPR já atendeu cerca de 2.583 pessoas em diversos casos. Um acompanhamento destas atividades é realizado pela Faculdade de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Contribui para o desenvolvimento do projeto, ao promover o estudo sobre o tema e permitir uma análise profunda dos impactos do conflito, visando a uma real efetivação da restauração dos danos causados à sociedade.

Por dentro...

O Dr. Leoberto Brancher, Juiz de Direito da 3ª Vara do Juizado Regional da Infância e da Juventude de Porto Alegre, conhece os preceitos da Justiça Restaurativa desde 1999. Entretanto, só a partir de 2002 pode começar a trabalhar, ainda que de maneira informal, com esta concepção de Justiça em sua jurisdição. Segue abaixo um trecho da entrevista concedida ao portal Setor3:

Setor3: Qual sua concepção sobre o que é Justiça Restaurativa?

Leoberto Brancher: Em termos práticos, um modelo prático e pacífico de regulação e harmonização social, lugar tradicionalmente ocupado pela justiça, e, em último grau, pela justiça penal. De fato, esse modelo parte da crítica do sistema penal de justiça, mas isso é apenas a ponta do iceberg pela qual se expressa, em síntese, a cristalização de um modelo cultural de relacionamento baseado na violência e na subjugação. A JR surge como resultado de uma releitura a respeito das questões vitais à organização das sociedades humanas. Com isso faz-se emergir uma nova ética a respeito das posturas que adotamos na afirmação de valores e normas, tanto como indivíduos quanto como instituições. Isto termina por revelar o modo mais ou menos autoritário como exercemos o poder, permitindo depurar os modelos tradicionais vigentes cuja democratização é indispensável para a construção da cultura de paz.

Setor3: Qual seu papel no projeto Justiça para o século 21?

LB: Um papel mensageiro. Sinto-me servindo de elo entre muitos mundos. O mundo do conhecimento, o mundo da instituição judiciária e das demais instituições que operam as políticas públicas, o mundo das pessoas que operam essas organizações, e o mundo dos usuários. Aprender, praticar, compartilhar, inspirar é o meu dia-a-dia no projeto.

Setor3: Quais as dificuldades encontradas para emplacar esta nova concepção de resolução de conflitos na sociedade?

LB: Como mudança ética e cultural, o processo de aprendizagem é lento, porque é eminentemente vivencial. E sem essa radicalidade ética, indissociável de uma mudança nas perspectivas e atitudes pessoais, não há chance de sucesso nas práticas restaurativas, embora engajar-se nessa realização gera um circuito benéfico e retroalimentado, uma espiral positiva, de transformação das pessoas e das instituições. Mas se não houver fidelidade aos valores, e se cada um, como propunha Gandhi, não se transformar no valor que quer ver transformado no mundo, o melhor da experiência não se revela.

S3: Quais as desvantagens deste modelo de Justiça?

LB: É trabalhoso. Pessoalmente, exige colocar-se em permanente crise, pois trazemos hábitos invencíveis relacionados aos jogos de poder, em que, no limite, no descontrole, podemos regredir aos modelos hereditários representados pela convicção no emprego da força - que geralmente acaba se confundindo com o emprego da violência -, como método de auto-afirmação. Além disso, mentalmente, exige transpor o pensamento linear e a perspectiva individualista auto-suficiente para o raciocínio complexo e coletivo. E, por último, coletivamente, o esforço é também no sentindo de superar as práticas burocráticas, departamentalizantes, e, ao mesmo tempo, compreender as dificuldades na demora para novos procedimentos que exigem tempo para conversar, ouvir e articular muitas pessoas. Antes usaríamos, bem pragmaticamente, designar alguém para pensar por todos, dar ordens e, quem sabe, depois avisar os resultados.

Setor3: E as vantagens?

LB: Em termos pessoais, a aprendizagem. Para todos os envolvidos, seja quem faz, seja quem estuda, seja quem participa como usuário, todos crescem. O principal dividendo é restabelecer as oportunidades de contato conosco mesmos, à medida em que passamos a redescobrir e a reencontrar com o outro numa dimensão de humanidade e respeito. A partir da experiência de compartilhamento da dor, ou seja, numa dimensão essencialmente comunicativa em que estamos despojados e desprotegidos, possibilitar uma viagem "do eu ao nós", que remete a uma dimensão de transcendência, de transpessoalidade, profundamente gratificante. Sem dúvida, uma refinada experiência espiritual. Em termos profissionais, a gratificação é também ver luz onde só havia desespero. Em termos institucionais, a abertura de novas perspectivas de planejamento, dando vida e sentido a burocracias que, parodiando Darcy Ribeiro, se transformaram em "máquinas de gastar gente".

Fonte: Senac - Setor 3


Em São Caetano do Sul (SP), piloto de JR utiliza metodologias diferentes nos ambientes escolar, forense e comunitário

Juliana Rocha Barroso

O projeto-piloto "Justiça Restaurativa e Comunitária em São Caetano do Sul: parceria pela cidadania" tem dinamismo próprio e dialoga com o contexto para aplicar o procedimento de círculo restaurativo utilizando diferentes metodologias, adequadas ao ambiente escolar, forense e comunitário.

A iniciativa da Vara da Infância e da Juventude, sob liderança de Eduardo Rezende Melo, juiz da Vara da Infância e da Juventude da Comarca de São Caetano do Sul, e equipe, conta com apoio institucional do Tribunal de Justiça do Estado. O envolvimento do magistrado com o tema aconteceu quando, em 2000, a Associação Brasileira de Magistrados, Promotores de Justiça e Defensores Públicos, na qual hoje é presidente, realizou o projeto Pela Justiça na Educação. “Nós pensávamos a atuação da Justiça por meio do acesso e da qualidade da educação de crianças e adolescentes e um dos aspectos envolvia também a resolução de conflitos. Também foi elaborado um livro referencial, que tem um texto do professor Pedro Scuro sobre isso. Lendo este texto, resolvi chamá-lo para nos assessorar”, conta.

Eles tentaram implementar um projeto em 2002 na cidade de Mairiporã (SP), onde Rezende era juiz. A Diretora de Ensino da região era a mesma de Jundiaí (SP), onde Scuro desenvolvia um dos primeiros projetos de JR do País. “Elaboramos um projeto para cidades da Serra da Cantareira, chamamos de Projeto da Serra. Encaminhamos para o Ministério da Justiça, mas na época não houve interesse”, recorda.

A primeira etapa do projeto de São Caetano, em 2005, teve foco nas escolas e nos adolescentes em conflito com a lei. Intitulado de Justiça e Educação: parceria para a cidadania, o projeto visava a resolução de conflitos de modo preventivo nas escolas, evitando seu encaminhamento à justiça, e daqueles não relacionados à vivência comunitária escolar, no Fórum, em círculos restaurativos. Também pretendia fortalecer redes comunitárias, para que agentes governamentais e não-governamentais, focados a assegurar os direitos da Infância e da Juventude, pudessem atuar de forma articulada.

Para isso, foram mobilizadas parcerias do Judiciário com a Secretaria de Estado da Educação (SEE), o Conselho Municipal de Direitos da Criança e Adolescente (CMDCA), o Conselho Tutelar, o Conselho Municipal de Segurança, o Cartório da Infância e da Juventude, entre outros.

Três escolas voluntárias aderiram ,chamadas de “pioneiras”. Para facilitar esses encontros restaurativos, educadores das escolas, pais e mães, alunos, assistentes sociais e conselheiros tutelares foram capacitados em técnica criada por Dominic Barter, da Rede Comunicação Não-Violenta (CNV), com base em experiências estrangeiras. Os facilitadores de práticas restaurativas, também conhecidos como conciliadores, passaram a realizar os círculos nas escolas e no fórum, nos casos em que houvesse vítima e os conflitos não fossem das escolas participantes do projeto ou em que as pessoas fossem de comunidades diversas e sem relação contínua de convivência. Nestes casos, houve a participação do juiz, do promotor de Justiça e das assistentes sociais do fórum. Outro espaço, desde o início, foi o Conselho Tutelar.

Segundo dados do relatório de atividades e resultados do projeto, o processo formativo atingiu não apenas as pessoas que iriam operar os círculos nos diferentes espaços, como também educadores escolares, por meio da abordagem de Facilitação de Mudanças Educacionais, desenvolvida pelo Centro de Criação de Imagem Popular (CECIP) e APS International, da Holanda.

A rede de atendimento foi articulada. Nela estavam representantes do Fórum, do Conselho Tutelar, da Educação, da Assistência Social, da Saúde e da Segurança (Polícia Civil e Militar, e Guarda Civil). Em reuniões periódicas para reflexão, incorporou-se a justiça restaurativa no fluxo de atendimento. Interessada em conhecer o projeto in-loco, a doutora Gabrielle Maxwell, da Universidade de Victoria, autoridade em JR na Nova Zelândia, ministrou voluntariamente curso sobre técnicas e procedimentos restaurativos. Rezende e a pedagoga Madza Ednir, formadora em Facilitação de Mudanças Educacionais, visitaram diversos projetos internacionais, trazendo experiências que contribuíram para seu aperfeiçoamento.

Em dezembro de 2005, existiam, em São Caetano, dez pessoas capacitadas para operar círculos restaurativos, dez lideranças educacionais das três escolas pioneiras e da Diretoria de Ensino e cinco assistentes sociais e conselheiras tutelares capacitadas para realização de círculos no fórum e no conselho.

Em 2006, o projeto foi ampliado para a comunidade, com a diversificação de técnicas restaurativas. Além disso, o sucesso da etapa inicial estimulou a SEE e a Diretoria de Ensino de São Bernardo do Campo a abrirem a outras escolas e todas as 12 escolas da rede estadual inseriram-se nas atividades. Cerca de cinqüenta pessoas foram capacitadas utilizando procedimentos da CNV, além de dez lideranças educacionais.

Além dos círculos sob responsabilidade das escolas e do fórum, em um segundo piloto, começaram a acontecer os círculos comunitários com o uso de nova prática restaurativa. O projeto foi chamado Restaurando justiça na família e na vizinhança: Justiça Restaurativa e comunitária no bairro Nova Gerty. “Em relação à comunidade, pelo último levantamento do Ministério da Educação, um dos grandes fatores que levam à evasão escolar é justamente a violência doméstica e a violência comunitária. Não bastava apenas fortalecer a rede secundária de atendimento e proteção, para que ela empoderasse a rede primária (famílias e comunidades a que pertencem crianças e jovens). Era preciso atuar diretamente”, justifica o juiz.

Pessoas voluntárias da comunidade foram capacitadas por Vania Curi Yazbek, docente em práticas de resolução de conflitos, para facilitar encontros restaurativos no espaço de uma escola voluntária do bairro, a Escola Estadual Padre Alexandre Grigoli. Ela utilizou a técnica dos círculos restaurativos inspirados nas práticas sul-africanas de Justiça Comunitária (Modelo Zwelethemba), apresentada por especialistas da África do Sul que participaram de um seminário para os participantes do projeto, em abril de 2006.

Ao administrar situações de conflito e de violência, o modelo sul-africano foca a construção de um plano de ação. “As necessidades individuais ficam menos presentes, pois o centro do trabalho não é ‘o seu problema’ ou ‘o meu problema’, mas ‘temos uma situação de violência como problema’. É uma experiência de democracia deliberativa em âmbito local, devendo operar dentro de certos limites, colocados por um código de atuação”, expõe o juiz em relatório de atividades do projeto.

Os círculos comunitários visavam, inicialmente, atender a conflitos de vizinhança e domésticos, numa parceria com a guarda municipal, polícia militar e Programa de Saúde da Família. “Aos poucos, foi se estendendo e passou a atender também conflitos que se davam nas ruas, ou entre adolescentes e jovens e seus familiares, ou entre jovens, ocorridos nas escolas municipais ou particulares do bairro, não participantes do Projeto Justiça e Educação.”

No final daquele ano, 50 pessoas operavam círculos nas 12 escolas, a maioria delas professores, e seis no fórum, todas com base no modelo CNV. Vinte voluntários operavam círculos comunitários no bairro de Nova Gerty, utilizando o modelo Zwelethemba. Dezessete lideranças educacionais, duas supervisoras, uma vice-diretora e uma professora foram capacitadas para acompanhar e apoiar o processo nas escolas.

Rezende conta que o objetivo é construir mecanismos para possibilitar uma participação maior. “No momento, inclusive, tentamos adquirir equipamentos tecnológicos para que a vítima possa ficar em espaços separados dos adolescentes quando ela não quiser ter contato.”

O juiz refletiu com a equipe sobre as ações desenvolvidas até então, visando novos ajustes e aperfeiçoamentos e chegou à necessidade de dois grandes movimentos complementares para que o projeto pudesse contribuir no delineamento de uma política nacional de implementação da Justiça Restaurativa: a maior opção de técnicas restaurativas passíveis de serem utilizadas e a maior complementaridade e articulação entre as diversas instâncias de resolução de conflitos (escolar, comunitária, judiciária) e técnicas utilizadas, com fluxos melhor definidos.

Decidiu-se, então, criar uma denominação específica para o papel que todo ator social assume quando se defronta com autores de atos ofensivos, violentos ou com os receptores desses atos e tem a tarefa de acolhê-los e encaminhá-los. O nome escolhido foi derivador. Foram considerados derivadores no projeto: juiz, promotores de justiça, diretores de escola, assistentes sociais do fórum, guardas e polícia, agentes comunitários de saúde, conselheiros tutelares, advogados, grupos de suporte a minorias e de atendimento a drogadição e alcoolismo. Os facilitadores de justiça/de práticas restaurativas também eram considerados derivadores quando não atuavam nos casos, mas encaminhavam situações de conflito para os círculos. Todos passaram a receber capacitação específica em derivação.

Em dezembro, a capacitação de facilitadores de de práticas restaurativas e de lideranças educacionais foi retomada, graças ao apoio financeiro da SEE de São Paulo, por meio da Fundação para o Desenvolvimento da Educação (FDE). O projeto, reestruturado, foi apresentado com novo nome Justiça Restaurativa e Comunitária em São Caetano do Sul: parceria pela Cidadania.

Marcos normativos

Além do Código de Processo Penal, da Lei 9099/95, que regulamenta os Juizados Especiais Criminais, e do Estatuto da Criança e do Adolescente, outros marcos normativos embasaram o projeto de São Caetano do Sul: a Resolução do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas (nº 12/2002), a Convenção das Nações Unidas sobre direitos das crianças, as Regras de Beijing (Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça da Infância e da Juventude) e Diretrizes de Riad (Diretrizes das Nações Unidas para a prevenção da delinqüência).

Nesta última, coloca-se o desafio da participação juvenil na administração da justiça, como facilitadores de justiça. Rezende conta que isso aconteceu. “Tivemos os que foram capacitados sem nunca terem participado de círculos e os que participaram de círculos e depois foram capacitados.” Leia abaixo entrevista com um destes jovens.

Depois de três anos de projeto, foram realizados 260 círculos, 231 chegaram a acordos, dos quais 223 foram cumpridos. Trinta e dois aconteceram no fórum, 160 nas escolas e 51 na comunidade. O projeto gerou práticas e conhecimentos consolidados em uma proposta de tecnologia social que está sendo aplicada e recriada em outros municípios do Estado de São Paulo. Este é o caso do Projeto Justiça e Educação: parceria para a cidadania, reconhecido pelo Ministério da Educação, que repassou verbas à SEE de São Paulo. Em 2006, ele foi expandido para Guarulhos (SP) e São Paulo (na região de Heliópolis) e, este ano, para Campinas (SP).

Eduardo Rezende acha que ainda não existe maturidade suficiente para a criação de um Sistema Restaurativo no Brasil. “Na Irlanda, eles levaram dez anos para construir um modelo e é um país pequeno. Acho que a gente tem um chão ainda, tem muita diversidade de contextos, de tipos de conflitos. Temos que amadurecer mais, inclusive são poucas as pessoas em condições de capacitar. Se for colocado em lei, não vai ter condições de capacitar o país inteiro. Vão ser feitas várias práticas chamadas de restaurativas, mas que não vão ser. O modelo não vai ter sucesso porque não terá sido bem implementado e isso não é favorável para ninguém”, justifica.

Ele conclui lembrando que o conflito sempre vai existir. “Achamos que o conflito não só faz parte da vida como é positivo, ele mostra divergência, traz inovação, mostra o desejo de transformação. O que esperamos é que haja conflitos menos violentos. Vamos criar mecanismos inovadores para que eles não sejam considerados como criminosos, infracionais, para que possam ser resolvidos em outros moldes. Acho que trabalhar com a dimensão privada do conflito tem gerado um outro perfil de atuação da justiça.”

Jovem facilitador de justiça

Peter Farias do Nascimento, 19 anos, é auxiliar administrativo da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) – Secção São Paulo. Ele e outros dois jovens foram capacitados para facilitar círculos no piloto de JR em São Caetano do Sul. Mas, antes disso, em 2005, o jovem participou do projeto como parte envolvida. “Foi apenas uma discussão de escola. Alguns colegas tinham problemas com uma menina da sala, não aceitavam muito bem, até que um dia todos alteraram a voz. Não houve agressão física, mas psicológica, o que geralmente é pior. Como o problema era com a sala em geral, fui o representante. Fomos convidados pela coordenadora para participar do projeto e aceitamos”, conta.

O jovem fazia estágio no fórum e foi convidado pelo juiz Eduardo Rezende e pela coordenadora da escola, Janice, para participar como voluntário. “Aceitei porque me interessei pelo projeto e por seus resultados, além de ser uma experiência nova dentro da aérea, na qual pretendo me especializar. O procedimento é interessante porque permite que as partes reflitam. É como se voltassem para a situação, têm que repetir o que falaram e, neste momento, normalmente, é quando bate o arrependimento. Estes conflitos surgem, por alguma necessidade da pessoa que não foi alcançada, é aonde vamos trabalhar.”

A capacitação foi realizada em diferentes escolas e Peter a define como dinâmica, devido às aulas práticas, às visitas de estrangeiros e à troca de experiências. O jovem participou de círculos restaurativos na escola e no fórum, todos com menores de idade. “Se tiver alguém que não os intimide, que compreenda e que tenha o mesmo linguajar, fluirá melhor. Trouxe bons resultados, que pude aplicar no meu cotidiano. Um deles foi saber ouvir, assim ficou muito mais fácil ajudar o próximo”, conclui.

Fonte: Senac - Setor 3

Serviço:

Associação Brasileira de Magistrados, Promotores de Justiça e Defensores Públicos


Projeto de São Paulo leva a Justiça Restaurativa para dentro das escolas e das Varas da Infância e da Juventude

Alexandre Saconi

Um rapaz saiu recentemente do Centro de Detenção Provisória da Vila Prudente, zona leste de São Paulo. Ficou preso sete meses. Sem provas, sem ter cometido nenhum crime. Após esse período, foram reunidas indícios suficientes para mostrar sua inocência. Como solucionar isso da melhor forma possível? E se houvesse a oportunidade de reunir todos os envolvidos para conversarem e escolherem a melhor saída? O desafio é dar autonomia para que as pessoas possam resolver seus conflitos sem a interferência de outros, como a polícia, advogados ou juízes. Assim nasceu o programa Justiça e Educação: uma parceria para a cidadania, com o objetivo de levar a justiça restaurativa (JR) para dentro das escolas e das Varas da Infância e da Juventude dentro do Estado de São Paulo e difundí-la na comunidade.

Como e onde tudo começou

Justiça e Educação (JE) surgiu em 2006 nas cidades de Guarulhos e São Paulo, após a experiência do projeto-piloto de São Caetano do Sul. Essas duas localidades foram escolhidas por serem de extrema importância: uma por ser capital e a outra por ser a maior da Grande São Paulo, além de seus juízes já conhecerem a JR.

Em Guarulhos já eram realizadas práticas restaurativas desde 2003. De acordo com a apostila das oficinas de capacitação, houve uma redução do nível de processos de mais de 6.000, em 2004, para menos de 3.100, em 2006. Já, em São Paulo, Heliópolis foi a região escolhida por apresentar uma estruturação mais definida de sua rede de apoio e de sua proximidade (divisa) com São Caetano do Sul. Isso permitiu a integração entre os projetos, porque muitas vezes o garoto de uma localidade estuda ou comete algum ato infracional - termo utilizado quando jovem com idade inferior a 18 anos desrespeita a lei - na outra região.

O JE mantém seu foco de atuação com a criança e o adolescente. Trabalha em duas frentes: na implementação de mudanças institucionais e educacionais dentro das escolas e das Varas da Infância e da Juventude e no fortalecimento da rede de apoio a estes jovens (entidades públicas ou privadas da área de defesa dos seus direitos).

No início do projeto, o foco em Guarulhos foi a atuação dentro da Vara da Infância e da Juventude e nas escolas sob a coordenação da Diretoria de Ensino (DE) de Guarulhos - Região Norte. Em São Paulo, o trabalho aconteceu dentro das escolas da regional Centro-Sul da DE da capital e com jovens de Heliópolis que tenham cometido algum ato infracional em qualquer região da cidade ou aqueles de qualquer local que tenham cometido algo dentro de Heliópolis.

O projeto iniciou-se com a parceria entre o Poder Judiciário do Estado de São Paulo e a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (SEE) que recebeu recursos da Fundação para o Desenvolvimento da Educação (FDE) e da Coordenadoria de Ensino da Grande São Paulo (COGSP) em convênio com o Fundo Nacional de Desenvolvimento e o ministério da Educação e Cultura para que fosse implementado em 20 escolas no segundo semestre. A SEE continuará investindo no projeto por considerá-lo uma forma de transformar as escolas em espaços democráticos para a construção de uma cultura de não-violência e de uma educação à sustentabilidade.

De acordo com a assessoria de imprensa da FDE, a Fundação é responsável pela coordenação do projeto juntamente com as dirigentes de Ensino e acompanha os trabalhos e as práticas desenvolvidas na rede de escolas. As ações são acompanhadas por um juiz de Direito, um técnico do Departamento de Prevenção e um especialista do Centro de Criação de Imagem Popular (Cecip). “A FDE solicita listas de presença e relatórios de progresso elaborados pela instituição contratada sobre cada uma das oficinas de lideranças educacionais e facilitadores de práticas restaurativas”, declara. A coordenação pedagógica do projeto acontece pelas reuniões sistemáticas entre as Diretorias de Ensino e os setores da Diretoria de Projetos Especiais da FDE.

O judiciário selecionou as regiões e as varas especiais para a implementação do projeto e autoriza juízes a investirem seu tempo nesta iniciativa, além de interagir e facilitar os encaminhamentos às redes de apoio de cada local. O poder executivo (responsável pela FDE e pela SEE) ficou responsável por captar verbas necessárias ao projeto; consultar as Diretorias de Ensino das regiões em que os juízes definiram como foco de atuação para a implementação do JE; fornecer todo o tipo de material, aparato e tempo dos funcionários empenhados; além de viabilizar e promover a articulação e a cooperação entre os atores envolvidos para difundir essa prática no meio escolar.

O projeto guia-se por uma estrutura comum. O sistema utilizado para a prática restaurativa é o de círculos restaurativos, na qual um facilitador faz a intermediação do encontro entre o autor do ato ofensivo, o receptor e a comunidade direta ou indiretamente afetada. Depois de identificada a necessidade do círculo, os profissionais designados que possuem conhecimentos específicos sobre as práticas restaurativas realizam inicialmente o pré-círculo, que consiste em entrar em contato com todos os envolvidos, apresentar a proposta a eles e questioná-los se desejam participar ou não do próximo passo, que é o círculo em si. É importante ressaltar que a participação é voluntária. Se o receptor ou o autor do ato em questão não quiser participar, o círculo não ocorre. Ninguém pode ser coagido a participar desta atividade.

Após esta etapa, será gerado um acordo para registrar os compromissos que cada parte assumiu para si dali em diante. Um profissional designado entrará novamente em contato com todos os participantes para verificar se o acordo está sendo cumprido. Caso não esteja, cabe àquele que se sentir injustiçado recorrer à Justiça Penal.

Com a boa avaliação do projeto, no dia 6 de agosto, institui-se uma comissão permanente pela SEE para estudar e propor medidas de implementação do projeto em outras escolas da rede de ensino público estadual de São Paulo. Um dos primeiros pólos fora da capital e da Grande São Paulo foi Campinas, onde o juiz Dr. Richard Pae Kim se encontra à frente do projeto.

Facilitadores e lideranças

O sucesso do projeto depende muito dos profissionais capacitados para realizarem os círculos restaurativos. Eles participam de oficinas para discutirem suas experiências e para aperfeiçoarem seus conhecimentos.

No JE existem dois eixos de capacitação: um pólo focado nos facilitadores dos círculos restaurativos e outro nas lideranças. Os facilitadores são aqueles que realizam os círculos diretamente dentro das escolas, comunidades, fóruns, etc. As lideranças são responsáveis pelas mudanças institucionais nos locais onde os círculos ocorrem. São esses também que irão divulgar e proporcionar meios para que os círculos aconteçam, levando essa prática ao conhecimento de todos em volta.

O método escolhido no projeto foi o do professor Howard Zehr. O centro internacional de Comunicação Não-Violenta (CNVBrasil), pelo diretor do Projeto de Justiça Restaurativa, Dominic Barter, foi um dos principais atores na capacitação dos facilitadores. Ele também é responsável pela formação da equipe ligada ao projeto Justiça para o Século XXI, em Porto Alegre.

As lideranças são capacitadas pelo CECIP, responsável pelo apoio às mudanças nas escolas e formação das lideranças educacionais. Segundo Monica Mumme, coordenadora do projeto pelo CECIP, o objetivo da formação das lideranças não é modificar o sistema disciplinar da escola, mas sugerir alternativas de resolução de conflitos. Ela dá o exemplo de propor uma reflexão sobre o papel da prática disciplinar e sua função na prática educativa. Para isso, são utilizados uma cartilha, um CD e um DVD, elaborados pelo Centro para o projeto no qual cada um dos membros envolvidos descreve seu papel, suas atribuições e suas dificuldades. A cartilha pode ser baixada em formato pdf gratuitamente no site.

Barter visa preparar pessoas para formar outras, já que a JR não é prática nova no Brasil. "Enxergamos a possibilidade de dar mais um passo rumo à autonomia em dar capacitação para essas pessoas. Estamos criando várias formas de apoiá-las. O mais óbvio é a formação de equipes. Alguns começam a compartilhar a capacitação comigo. Eu fico no papel de supervisão deles e estas supervisionam outros facilitadores", explica.

Um dos impasses encontrados pelos capacitadores reside na mudança de valores e da cultura em que os indivíduos estão inseridos. Nas palavras de Mônica, seria “ressignificar as relações”. Ou seja, “Não é retirar a hierarquia, pois em certo grau ela é necessária, mas humanizá-las. Dentro do círculo há um poder compartilhado entre todos os participantes. Não é por ser professor que isso queira dizer que sou dono da verdade.”

Na escola

Aquele mesmo jovem que foi preso, após sair do Centro de Detenção, tentou retomar o controle sobre sua vida e pediu ajuda à instituição que trabalha com os jovens de seu bairro. Essa entidade conseguiu um emprego para ele em um supermercado. Os empregadores o aceitaram com uma condição: que ele estivesse estudando. Sem pensar duas vezes, ele topou e se matriculou novamente na escola para concluir seus estudos. Como forma de comprovar freqüência, ele precisava levar um papel assinado da escola.

No início não pareceu ser tão fácil, pois já estava fora da idade escolar e ficou encarcerado durante sete meses. Ele se esforçou para conciliar as dificuldades de sua vida pessoa, seu trabalho e seus estudos. Certo dia ele se desentendeu com a professora, o que gerou uma situação de desconforto entre ambos. Isso pode ter provocado diversas reflexões e inúmeras interpretações dos motivos que levaram cada um a agir daquela forma. Por sorte, essa escola era uma das escolhidas para o projeto JE em Heliópolis.

No ambiente escolar, o objetivo da JR é resolver os problemas ali mesmo onde eles ocorrem, sem a necessidade de levá-los adiante ou de delegar a solução deste para outras pessoas. O caso acima pode ser citado como exemplo disso. Antes que os conflitos tomem proporções maiores, como uma agressão física e acabe em uma delegacia, onde será gerado um boletim de ocorrência e, conseqüentemente, encaminhado a uma Vara especializada neste tipo de ato. O problema poderia ser resolvido diretamente ali, na escola.

Na prática, quando há um conflito na escola, não quer dizer que ele se restrinja àquele lugar. Segundo Edmundo Barboza Silva, facilitador de círculos restaurativos em escolas e na comunidade de Heliópolis, “se o garoto anda armado na escola, não é de se alarmar, pois ele também anda armado na comunidade. Então, a escola não é ‘aquela’ coisa, tão diferente. Ela é uma extensão, o menino passa grande parte do tempo dele lá”. Por isso ressalta-se a importância de integrar este trabalho com a comunidade também, porque os valores são levados de um ambiente para o outro.

A escola deve fornecer um caminho para que as pessoas solicitem isso. Em alguns casos, por exemplo, registra-se em um caderno o pedido e o nome das pessoas envolvidas no ato. Cada lugar estabelece a forma mais adequada, mas o fundamental é fornecer o caminho para viabilizar a solicitação.

O círculo não vem para mudar a rotina disciplinar da escola, como advertências, suspensões ou expulsões, mas pretende ser uma alternativa para estes sem substituí-los necessariamente. Parte-se do princípio que, se os envolvidos se conscientizarem de seus atos, a punição mais severa seja desnecessária. Para isso, é necessário que o círculo em si seja bem realizado. O facilitador irá reunir a comunidade afetada (que pode ser o público da escola, alguém que viu, um grupo de funcionários etc), o receptor e o emissor do ato ofensivo. Cada um poderá expor o que interpretou do ocorrido e dizer como se sentiu.

No final do círculo é feito um acordo em que cada parte irá assumir uma série de compromissos para que dali em diante esse conflito ou outro similar não se repita. Logo em seguida, uma pessoa capacitada em JR entrará em contato com todos os participantes do círculo em questão para acompanhar se está tudo certo. Em qualquer momento, uma das partes que se sentir injustiçada pode buscar outros meios legais de se fazer respeitar e de concretizar a justiça. Tanto que o acordo final é enviado para o juiz verificar se não houve abuso das partes na hora de fechá-lo.

Não volto para a cadeia

A história do garoto que está sendo contada aqui teve um processo de resolução um pouco diferente do planejado. Após constatação do desentendimento, a escola entrou em contato com o Dr. Egberto Penido, juiz responsável pelo projeto. Ao perceber que o problema não precisava ir para o fórum, que poderia ser solucionado ali mesmo, entrou em contato com os profissionais das entidades sociais da rede de apoio para que eles propusessem o círculo entre os envolvidos.

Depois da proposta aceita, os profissionais foram para escola para conversar com todos e apresentar a proposta do processo restaurativo. Porém, a situação encontrada já havia ido além das paredes da sala de aula. Naquele momento, os professores estavam discutindo em frente ao aluno sua expulsão. A diretora chamou a professora para participar da discussão também.

A postura de ambos gerou um conflito mais rígido e os dois começaram a se ofender mutuamente. Os profissionais da rede de apoio propuseram um círculo restaurativo para os participantes. A professora disse não acreditar que um círculo restaurativo naquele momento pudesse resolver aquela situação e o garoto estava na defensiva.

Um dos educadores da escola resolver que iria chamar a polícia caso o aluno não se controlasse e parasse de fazer ameaças. Diante disso ele fez uma fala que foi o ponto alto de toda essa discussão: “Você pode até chamar a polícia, mas eu não volto para a prisão. Nem mesmo que para isso eu tenha que morrer! Se for o caso, eu vou morrer”, disse. Todos ficaram em silêncio. Os profissionais da rede de apoio explicaram os problemas pessoais do jovem e suas dificuldades depois de sua saída do CDP. No final, todos chegaram a um acordo.

Mesmo sem ter sido um círculo restaurativo nos padrões comuns, no passo a passo descrito, houve o contato prévio com todas as partes. Todos se reuniram, discutiram e tiraram medidas para serem tomadas. Ainda que não haja o acompanhamento formal, todos se sensibilizaram com os problemas apresentados. O jovem mostrou como foi sua vida e o motivo que o fez agir daquela forma. Também percebeu que a professora tem uma história de vida e passou por uma situação delicada na frente dos alunos.

Cabe questionar novamente: Prender resolveria? Esta conversa que todos tiveram não foi importante para que cada um percebesse seu papel nas relações uns com os outros? Essa é a proposta da JR: não substituir, mas propor alternativas à resolução dos conflitos. Todos têm o potencial, mas caso uma das partes não queira, essa pode dar entrada no fórum ou fazer um Boletim de Ocorrência. Mas, felizmente, não é isso que esse projeto pretende.

Fonte: Senac - Setor 3

21/09/2008

Disponível em: http://www.espiritualidades.com.br/Not_2008/2008_09_21_justica_restaurativa.htm. Acesso em: 27/10/2008.

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“Se você é neutro em situações de injustiça, você escolhe o lado opressor.” Desmond Tutu.

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Livros & Informes

  • ACHUTTI, Daniel. Modelos Contemporâneos de Justiça Criminal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.
  • AGUIAR, Carla Zamith Boin. Mediação e Justiça Restaurativa. São Paulo: Quartier Latin, 2009.
  • ALBUQUERQUE, Teresa Lancry de Gouveia de; ROBALO, Souza. Justiça Restaurativa: um caminho para a humanização do direito. Curitiba: Juruá, 2012. 304p.
  • AMSTUTZ, Lorraine Stutzman; MULLET, Judy H. Disciplina restaurativa para escolas: responsabilidade e ambientes de cuidado mútuo. Trad. Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2012.
  • AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de; CARVALHO, Salo de. A Crise do Processo Penal e as Novas Formas de Administração da Justiça Criminal. Porto Alegre: Notadez, 2006.
  • CERVINI, Raul. Os processos de descriminalização. 2. ed. rev. da tradução. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
  • FERREIRA, Francisco Amado. Justiça Restaurativa: Natureza. Finalidades e Instrumentos. Coimbra: Coimbra, 2006.
  • GERBER, Daniel; DORNELLES, Marcelo Lemos. Juizados Especiais Criminais Lei n.º 9.099/95: comentários e críticas ao modelo consensual penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.
  • Justiça Restaurativa. Revista Sub Judice - Justiça e Sociedade, n. 37, Out./Dez. 2006, Editora Almedina.
  • KARAM. Maria Lúcia. Juizados Especiais Criminais: a concretização antecipada do poder de punir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
  • KONZEN, Afonso Armando. Justiça Restaurativa e Ato Infracional: Desvelando Sentidos no Itinerário da Alteridade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.
  • LEITE, André Lamas. A Mediação Penal de Adultos: um novo paradigma de justiça? analise crítica da lei n. 21/2007, de 12 de junho. Coimbra: Editora Coimbra, 2008.
  • MAZZILLI NETO, Ranieri. Os caminhos do Sistema Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007.
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