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28 de mai. de 2018

‘Uma sociedade que coloca uma pessoa contra a outra cria monstros, e tem que lidar com isso’

Pesquisadora belga Brunilda Pali passou por Porto Alegre durante a semana e falou sobre os benefícios e os limites da adoção de práticas de justiça restaurativa | Foto: Guilherme Santos/Sul21
Luís Eduardo Gomes
É possível ter uma justiça diferente? Uma justiça mais preocupada com a recuperação dos agressores e com a reparação dos danos feitos às vítimas do que o atual modelo, focado essencialmente na punição dos agressores? Brunilda Pali, pesquisadora do pós-doutorado do Instituto de Criminologia de Leuven, na Bélgica, e secretária do Conselho do Fórum Europeu de Justiça Restaurativa, acredita que sim.
A pesquisadora belga esteve em Porto Alegre no início desta semana para participar do treinamento na área da Justiça Federal do Rio Grande do Sul, que está começando a adotar práticas restaurativas ao lidar com crimes cibernéticos. Em conversa com o Sul21, Pali explica que a justiça restaurativa tem por objetivo promover encontros entre agressores e vítimas, o que nem sempre é possível no caso dos crimes cibernéticos, em que muitas vezes sequer a vítima é identificada. Contudo, destaca que o método pode ser benéfico para ajudar quem pratica esses atos a entender a gravidade do que cometeu, um passo importante para a reparação e reabilitação.
Por outro lado, destaca que este é um método que pode trazer resultados muito positivos quando o crime a ser mediado está relacionado a violência sexual ou até em casos de assassinatos, ajudando a responder perguntas dos entes próximos à vítima e propiciando a eles um “fechamento” que não teriam com a simples condenação do culpado. “Em diversos casos, a vítima tem perguntas, querem saber o porquê do que aconteceu. ‘Por que você fez isso comigo?’ Precisam de informação, precisam contar a história delas, como a perceberam. Querem que o agressor escute os impactos que tiveram nelas, querem que suas histórias sejam validadas por outros, pelo sistema de justiça e quem estiver presente no processo restaurativo”, diz a pesquisadora.
Ao longo da conversa, ela também defende que a justiça restaurativa deve ser adotada como um método possível de redução da reincidência criminal, mas ressalva que é importante que esteja sempre acompanhada de políticas sociais que visem combater as injustiças sociais e que tem por objetivo substituir completamente a justiça criminal. Confira a seguir a íntegra da entrevista.
Sul21: O que é a Justiça Restaurativa?
Brunilda Pali: É uma justiça alternativa que começa com o que aconteceu, quem foi afetado, quais são os danos que acontecerem e como esses danos podem ser reparados. Esse é o foco central, não a punição, não quem cometeu, não encontrar os fatos, mas trabalhar com o agressor, a vítima e a comunidade de forma conjunta para reparar os danos.
Sul21: Deve ser combinada com o sistema penal ou pode ser um substituto?
BP: Depende. Algumas vezes, para crimes mais leves, a intenção pode ser de desviar do sistema. Por exemplo, para pessoas jovens. Se as ofensas forem cometidas por pessoas com menos de 18 anos, a intenção é manter a pessoa fora da prisão. Há um consenso de que a prisão não é boa para pessoas jovens. Então, o que você faz é tentar desviá-las do sistema. E, nesse caso, você faz apenas a mediação restaurativa. Em crimes mais socialmente condenáveis, como assassinatos, você faz os processos restaurativos após a sentença, o que significa que a pessoa está presa, cumprindo sua punição, e, junto com isso, ainda pode-se trazer a vítima e o agressor para trabalharem juntos no que aconteceu.
Sul21: A justiça federal do RS está implementando a justiça restaurativa começando por crimes cibernéticos. Como a senhora vê a utilização da mediação nesses casos?
BP: Até o momento, não há práticas conhecidas de justiça restaurativa para crimes cibernéticos em geral. Há muitas boas experiências em justiça restaurativa para violência sexual, quando envolve crianças, geralmente em casos em que há contato físico, casos de violência intra familiar, incesto e coisas do tipo. Há várias práticas positivas nesses casos. Essa área é nova, é muito empolgante. Eu acho que perspectiva principal que eu posso trazer é a perspectiva da vítima, porque claramente eles estão tentando envolver os agressores aqui, ter conversas, e isso, do ponto de vista restaurativo, não é uma prática totalmente restaurativa, porque foca na comunicação entre vítima e agressor e reparação de danos. Isso é mais algo que se chamaria de programa de tratamento do agressor, com um foco restaurativo. É como eu descreveria. Eu gostaria de trazer a perspectiva da vítima. Claro, é uma questão muito desafiadora, então tivemos muitas discussões sobre isso, porque em muitos casos a vítima não é nem identificada. E, quando é identificada, é pior. Contar para a vítima o que aconteceu ou não. Qual é o impacto?
Brunilda Pali participou de um seminário sobre justiça restaurativa na JFRS, em Porto Alegre | Foto: Guilherme Santos/Sul21
Sul21: Porque é um tipo de crime que muitas vezes a vítima não toma conhecimento.
BP: Há um dilema ético. Contamos para a vítima ou não? Qual é a melhor coisa a se fazer? Se isso acontesse comigo, eu gostaria de saber ou não? É um difícil dilema ético. Mas, de certa forma, pode haver dificuldades em trazer a vítima real, que simplesmente pode não saber, então isso traz dificuldades para os procedimentos restaurativos.
Sul21: Quais são os benefícios para a vítima desse tipo de processo?
BP: Em diversos casos, a vítima tem perguntas, querem saber o porquê do que aconteceu. ‘Por que você fez isso comigo?’ Precisam de informação, precisam contar a história delas, como a perceberam. Querem que o agressor escute os impactos que tiveram nelas, querem que suas histórias sejam validadas por outros, pelo sistema de justiça e quem estiver presente no processo restaurativo. Elas gostariam de ouvir alguma garantia de o que aconteceu com elas não será repetido. Então, o agressor tem que participar de algum tipo de programa de recuperação ou se envolver em algum tipo de mudança. A vítima quer um fechamento para poder seguir em frente. E isso é difícil nesses casos (crimes cibernéticos), porque alguns dos danos são perpétuos, não têm fim. Se uma imagem de uma certa pessoa está circulando na internet, não vai haver um fim para isso, temos que viver com isso como sociedade. Nesses casos, eu acho que o que se pode fazer é trazer a perspectiva da vítima, mas você também pode tornar o agressor consciente do dano, de que há danos muito sérios que acontecem com algumas dessas vítimas, suicídio, inclusive. Se elas são adultas, podem ser demitidas de seus empregos porque as imagens começaram a circular na internet. Elas têm medo, porque alguém pode achar essas imagens e atacá-las na vida real. Então, há consequências muito sérias para a vítima, o que eu acho que nós não estamos plenamente conscientes, porque tratamos como um ‘download’. Há consequências muito sérias e os agressores devem estar cientes disso.
Sul21: Quais são os resultados da justiça restaurativa em casos de violência sexual?
BP: Há pesquisas que foram realizadas, principalmente em países como Austrália e Canadá, comparando resultados de tribunais e conferências de mediação e que, absolutamente em todos os casos, a superioridade da conferência para as vítimas e agressores é provada. No entanto, há alguns riscos, especialmente para as crianças. Por quê? Alguns desses crimes lidam com manipulação, dominação, controle. Então, nós temos que estar bem conscientes da diferença de poder quando você junta agressor e vítima. Claro que o ideal da justiça restaurativa é criar encontros reais, mas e quando você colocar para sentar juntos um agressor e uma criança? Muitas vezes nós pensamos em homens muito velhos e crianças muito novas, mas os casos que nós temos são geralmente dentro das famílias, entre irmãos e irmãs. Um jovem de 14 anos e um jovem de 17. Ou de 20 e 15. Há uma grande variedade de casos que são trabalhados em casos de pedofilia.
Sul21: Pelo menos aqui no Brasil, a maioria dos casos de pedofilia ocorrem dentro das famílias.
BP: Esse é outro caso em que a justiça restaurativa parece ser bem sucedida. No caso da violência intrafamiliar, se há uma chance de que agressor e vítima tenham que ter contato — há casos em que não tem como não ter mais contato, especialmente dentro de uma família –, esses são os casos em que a mediação é mais bem sucedida.
Sul21: Quais são os métodos usados para atingir esse sucesso?
BP: Geralmente, se a justiça restaurativa trata de casos de violência sexual, a equipe é mais especializada, não é apenas uma mediação comum, como a que ocorre em casos crimes contra propriedades. Você precisa trabalhar com programas de reabilitação para o agressor, você precisa trabalhar com terapia infantil, programas de proteção à criança. E, uma vez que você tenha uma boa equipe, você terá de garantir que um psicólogo esteja sempre a postos no caso, porque alguns dos agressores têm a tendência de minimizar o que eles fizeram. Eles negam. Há pequenas coisas, técnicas, que se você não estiver consciente sobre a problemática da violência sexual, você não saberia. Todas as especificidades do caso têm que ser consideradas. E, depende, como eu falei, se há uma questão física, pode ser que a criança tenha preparado uma declaração, então o que a criança pode querer fazer não é reparar o relacionamento com a pessoa que a machucou. Mas, se é intra familiar, é necessário. Você tem que conviver com a pessoa no dia seguinte. Então, algo tem que ser feito. Mas mesmo se não for intra familiar, você pode querer estabelecer limites no que pode ser dito. Há acordos que são feitos diante dessas consequências. Geralmente, começam com o que aconteceu. Os dois lados contam as suas versões.
Até o momento em que você fica diante do agressor, há um grande processo de preparação. O encontro é apenas aquela imagem que nós vemos, enquanto o mediador trabalhou bastante com as duas partes, para prepará-las, para compreender suas expectativas também. Por exemplo, a vítima vai dizer o que aconteceu, como foi afetada e quais são as suas expectativa de alcançar. Pode dizer: ‘eu só quero dizer isso ao agressor’ ou ‘eu quero fazer essa pergunta’. Se a vítima está esperando um desculpa, o mediador que checar isso pode ter que preparar a vítima para que suas expectativas possam não não se concretizar.
Sul21: É importante ter essa preparação?
BP: Absolutamente. É o briefing, que dá um bom senso do que vai acontecer, preparando as pessoas.
Sul21: Quais são as principais precauções que o mediador deve ter em casos envolvendo crianças e adolescentes?
BP: O problema é o silenciamento. Muitos pais, agindo no melhor interesse da criança, estão excluindo as crianças do acordo. É feito com boas intenções, mas não é o certo. A segunda coisa é que, por causa das técnicas de controle e dominação, elas se auto-silenciam. Então, há técnicas básicas. Pode-se pedir para uma pessoa preparar uma declaração e lê-la. Isso é um protocolo muito bom, por exemplo, para ajudar as crianças a ficarem no foco, ler o que preparam, pensar sobre antes e não ficarem intimidadas pelo processo. Em alguns casos familiares, ela pode se culpar. Então, se algo aconteceu entre um irmão e uma irmã, pode acontecer de os pais culparem a vítima. Isso é muito comum. Você tem que estar consciente dessas ações, você deve ter certeza de que está empoderando a vítima, não a vitimizando de novo.
Sul21: E isso acontece em alguns casos?
BP: Se o mediador não está cuidadoso ou está mal preparado, pode acontecer.
Sul21: Quem é o mediador?
BP: O mediador é uma figura diferente em cada país. Normalmente, é uma função social aceita pela sociedade. Se é no serviço de prisão condicional, se a mediação está acontecendo ali, então o oficial da condicional pode assumir esse papel. Em algum casos, são ONGs que estão fazendo esse trabalho e os mediadores são assistentes sociais. Se vamos para o sistema judicial, começa a ficar mais problemático. No Brasil, o modelo que vocês têm é de que o juiz é o mediador treinado para fazer a justiça restaurativa. É interessante. Na perspectiva europeia, esse não é o caso. Você tem que ter certeza de que quando você faz a mediação, porque a bagagem ética e profissional sempre vem com essa figura, de que não irá confundir com outros papeis. Se é um oficial da condicional, talvez tenha outra ‘lente’ com a qual você olha para as pessoas. Se você é apoio à vítima, você está sempre olhando para a proteção e esse não é o caso da justiça restaurativa, esse não deve ser o foco primário. É uma função social muito específica. Em alguns casos, são voluntários, por exemplo, na Noruega. Em alguns países, o profissionalismo é muito enfatizado e voluntários não são aceitos.
Sul21: Quais são os limites da justiça restaurativa?
BP: Eu gostaria de deixar claro desde o começo que isso não é um tipo de história que alcança o nirvana. Não é um milagre. É uma boa abordagem, uma boa lente para abordar conflitos, danos e erros. Mas, frequentemente, deve estar combinado com outras intervenções. Por exemplo, a gente não pode esperar que um encontro entre duas pessoas fará um milagre ou mágica. Faz bastante, porque não é a primeira coisa que se pensa, fazer com que as duas pessoas [agressor e vítima] se encontrem, se comuniquem, e tem a sua contribuição, mas é muito limitada. Não pode substituir várias outras coisas que ainda são necessárias.
Sul21: Te parece que falta ao sistema penal pensar a reparação psicológica da vítima?
BP: Absolutamente. A vítima no sistema penal é um ator excluído. Não tem um papel, seu papel é principalmente o de testemunha de algo ou pode ser a parte civil. Muitas vítimas ficam profundamente traumatizadas pela forma como são tratadas pelo sistema penal, pela forma como não são consideradas. Então, basicamente, nós perpetuamos o dano que acontece com a vítima por meio do nosso sistema penal, porque a lente do sistema de justiça é o agressor. Vamos punir o agressor. Isso não é desimportante, mas não pode ser a única lente. Algo aconteceu para uma pessoa real, então nós temos que lidar também com esse dano real.
Sul21: O sistema penal geralmente trata do dano à sociedade?
BP: Mas é um dano muito ficcional também. Claro que é importante, mas também uma construção. O bem comum é uma construção. Por outro lado, é necessário, porque, por exemplo, se uma pessoa sem-teto é morta, não há vítima mais. O que devemos fazer se não há mais vítimas? Não devemos fazer nada com o agressor? Não. Esse caso representa uma condenação social do que aconteceu. Então, eu não quero pensar em termos de substituição. Mas, por exemplo, o sistema percebe o crime como uma violação da lei. É isso. É treinado para ver as peculiaridades do olhar da lei. Na justiça restaurativa, nós dizemos que, acima disso, você deve olhar o crime como violação das relações sociais, de normas sociais e você não pode limitar o seu olhar à lei. É uma categoria muito limitada e exclui uma série de outras coisas que nós [da justiça restaurativa] agora tentamos trazer. Nós trazemos a vítima para o centro do palco. E, se você começa com a ideia de que a reparação do dano é central, nós também não estamos convencidos do tipo de ato que devemos focar. Por exemplo, um crime como o uso de drogas. Para quem isso cria dano? Quem é a vítima? Agora nós estamos focando na punição, nós criminalizamos esse ato e atuamos bastante sobre ele, enquanto, por exemplo, violência doméstica e abuso sexual apenas recentemente foram inseridos no sistema. Não eram reconhecidos. O que estamos vendo é um desequilíbrio. Eu acho que o sistema deve tentar ter outras lentes, tentar focar em atos que produzem danos.
Sul21: A senhora deixou claro de que não se trata de substituição. Mas, nesse caso de uso de drogas, em que não há vítimas, a justiça restaurativa poderia ser um substituto?
BP: Eu não acho que a justiça restaurativa sirva para o caso de uso de drogas. Eu não acho que seja uma solução encher as nossas prisões com pessoas que estão abusando de drogas. Acho que devemos trabalhar mais em direção a políticas de justiça social, abordagens mais médicas. Há outras formas de lidar com o uso de drogas que não criminalizando.
Sul21: Você prefere a despenalização do uso de drogas?
BP: Claro.
Sul21: Quais são os ganhos que a justiça restaurativa pode trazer para crimes graves, como assassinatos, estupros, sequestros, roubos à mão armada?
BP: Primeiro, sempre deixando claro que não é um substitutivo. Por que é uma ideia tão focada em comunicação e no encontro, eu vejo mais vantagens da atitude restaurativa, na verdade, em casos de assassinato comparado com assaltos à mão armada. Você sempre pode trazer o diretor do banco e uma pessoa jovem para um encontro, e isso é feito em alguns países, mas, segundo a minha perspectiva, isso não resulta em mediações bem-sucedidas. Há sucesso no sentido de que alguns limites podem ser colocados, e pessoas jovens, em vez de serem presas, podem trabalhar para a comunidade. Então, pode ajudar na construção de algum tipo de acordo entre todas essas partes. E, claro, você não pode esperar que esta pessoa jovem vá reparar todo o dano econômico do banco. Isso não é possível. Mas as mediações mais emocionais são aquelas em que algo realmente ruim aconteceu a uma pessoa real, não a um banco ou a um shopping center. Essas são mediações realmente poderosas. Isso realmente ajuda a vítima, fazer as perguntas, dizer o que aconteceu, para alcançar um fechamento, seguir em frente com sua vida. E ajuda o agressor a ver o que ele fez, porque temos um sistema de justiça que, no final, não ajuda o agressor a ver o que ele fez. Nós apenas damos uma categoria, você está na prisão por tantos anos por aquilo. E então nada acontece.
Sul21: Pode diminuir a reincidência?
BP: Pesquisas são muito claras sobre os benefícios da justiça restaurativa em termos de reincidência na comparação com o sistema criminal. Não se trata de a justiça restaurativa ter 100% de sucesso, acho que é difícil de garantir isso, porque, como disse, isso não é um milagre, é apenas um encontro e sempre temos que ser claros sobre as limitações do que estamos falando. Mas, comparando ao sistema criminal, é muito mais bem-sucedida em reduzir os níveis de reincidência. E também faz sentido, se você pensar, porque quando colocamos uma pessoa na prisão — que é uma escola do crime, para começar –, o que estamos esperando? Aí sim nós estamos esperando um milagre.
Brunilda Pali defende que é preciso humanizar o sistema judiciário | Foto: Guilherme Santos/Sul21
Sul21: A justiça restaurativa pode resultar na redução de penas. Você poderia falar um pouco sobre os objetivos da justiça restaurativa para o agressor?
BP: Você tem que considerar soluções criativas. Por exemplo, trabalho comunitário, reparação do dano, coisas nem sempre relacionadas à prisão. Se estamos falando de mediação após a sentença, após a prisão, o objetivo ali vai ser diferente. O objetivo não é chegar com um plano, porque o plano geralmente vem antes da prisão. O plano geralmente vem com a ideia de ‘o que vamos fazer com isso’, qual a responsabilidade que você assume do que você fez? Na prisão, a punição já está lá. Então, o foco é mais para a vítima para confrontar o agressor, falar sobre os impactos, e também com a esperança de mudar alguma coisa na pessoa, ajudar o agressor a compreender o que aconteceu. Não sei se as ações de todos os indivíduos vão aparecer, porque ali o processo é mais importante que o resultado. Em casos muito graves, após a sentença, o processo é muito mais importante do que o resultado. O resultado se torna mais interessante quando falamos de métodos alternativos. Quando uma pessoa jovem fez algo errado e eu decidi enquanto sistema não a colocar na prisão, então o que fazemos? Assim o encontro restaurativo se torna um caminho para a construção de algo.
Sul21: Em países como o Brasil, em que temos cerca de 700 mil pessoas em prisões, como a justiça restaurativa pode ajudar a lidar com essas altas taxas de encarceramento? 
BP: Idealmente, deveria ajudar. A justiça restaurativa é uma ideia enraizada nos ideais abolicionistas, mas os ideias abolicionistas são uma abordagem programática completa. Não é simplesmente abolir as prisões, mas vários passos que você tem que tomar em ordem. Por exemplo, a descriminalização de certas ofensas pode ser um jeito de lidar com isso. Ter mais sanções comunitárias pode ser outro jeito de lidar. Então, a justiça restaurativa certamente, tendo sido baseada em todas essas ideias, tem uma reivindicação ou uma intenção, um desejo, de influenciar a redução da punição. A realidade é que o sistema incorporou a ideia, também na Europa, e utilizou para os seus próprios propósitos. Então, o que nós estamos vendo agora é que, sobretudo, a justiça restaurativa é usada para ofensas leves, coisas que usualmente são punidas com dois ou três anos, no máximo. Pessoas jovens também são muito aceitas na justiça restaurativa. De alguma forma, essa ideia foi colonizada pelo sistema e provavelmente isso deveria ser esperado, porque é um sistema muito massivo, muito importante, mas muito massivo. Então, talvez não seja realístico esperar que se pode criar uma revolução imediata. Com isso, alguns estudiosos da justiça restaurativa preferem trabalhar fora do sistema e isso significa que eles gostam de trabalhar com suas próprias referências. Mas muitos estudiosos defendem a ideia da reforma, querem trabalhar dentro sistema de alguma forma, mesmo o espaço sendo muito pequeno. Mesmo na Bélgica, onde a justiça restaurativa é muito bem-sucedida, os casos são muito pequenos comparados com o que poderia ser trabalhado, na verdade, restaurativamente. Isso mostra que há um filtro no sistema.
Sul21: Claro que é um caminho, mas você acha que pode-se chegar, em alguns países, em um momento abolicionista? Isso é alcançável?
BP: Claro que é alcançável. Por exemplo, como na Noruega, que é sempre a melhor da turma nesse tipo de coisa. Mas o caminho para prosseguir é priorizar a justiça restaurativa, priorizar justiça social, emprego, políticas sociais, reduzir a penalização sempre que possível, reduzir as penas máximas de prisão. Na Noruega, se você matou uma ou dez pessoas, é sempre o mesmo limite. Você não pode ser condenado a 40 anos. Há um limite máximo de 21 anos e é isso. Há vários procedimentos e garantias dentro do sistema e isso faz com que o sistema não esteja criando monstros, não está olhando para as pessoas como monstros, mesmo no caso de Breivik. A reação que a Noruega mostrou aquele caso é uma lição para todos nós. Isso é possível, se você criar uma sociedade que é orientada para essa abordagem, esse é o resultado. Se você cria sociedades em que imuniza as pessoas, as coloca umas contra as outras, penaliza certas pessoas, não trabalha com justiça social, você cria monstros. Então você tem que lidar com isso.
Sul21: Como mostrar isso para a sociedade? Aqui nós temos movimentos para redução da maioridade penal, para liberalização do mercado de armas, em defesa de mais justiça penal.
BP: Soa assustador.
Su21: Como convencer as pessoas de que esse não é o caminho certo?
BP: Acho que, olhando para os EUA, seria bastante fácil. É o país com as maiores taxas de encarceramento, com a maior liberalização das armas, então tem um tiroteio em escolas toda semana. Eu não acho que vocês gostariam dessa realidade. Para mim, isso não é muito difícil. Você precisa de políticos responsáveis para implementar políticas sociais. Eu acho muito louco que as pessoas aceitem. Claro, as pessoas são manipuladas pela mídia e outros meios ou se assume que o povo é punitivista a esse ponto porque as pessoas também estão acostumadas a ter certos ganhos políticos pensando que a opinião pública é muito punitivista. Como nós sabemos disso? Já perguntamos isso para alguém? Isso não é verdade. Há pesquisas de opinião em todo o mundo que desmascaram esse mito, é um mito construído. Eu estou preocupada agora que o Brasil está indo nessa direção.
Com relação à justiça restaurativa, há um resultado interessante. Por um lado, você pode argumentar que o fato de a justiça restaurativa ser feita por juízes vai mudar a justiça restaurativa. Claro, porque eles são o núcleo do sistema. Mas também me dá a esperança de que, talvez, com os juízes estão abraçando esta prática ou tentando trabalhar com isso, o sistema vá se suavizar por dentro. Pode ser muito arriscado, porque essa ideia pode ser sufocada, mas há razão para otimismo. Pode mudar as ‘lentes’ dos juízes. Eles vão pensar duas vezes antes de priorizar a punição.
Sul21: Nós estamos falando essencialmente da humanização do processo para as vítimas e para os agressores. Falta ao sistema judiciário essa humanização que advém da justiça restaurativa?
BP: Em primeiro lugar, o Brasil parece ter um modo muito jurídico de proceder. Muito focado na lei. Vocês colocam muitas expectativas nas leis, fazem muitas leis. Uma das limitações da lei, como vimos nos crimes cibernéticos, é que, quando você fez a lei, os criminosos vão estar três passos à frente de você. Então, o sistema legal tem que se acostumar a fazer menos leis, porque essa não é a resposta. É para algumas coisas, mas temos que trabalhar com a sociedade. Essa é uma reflexão que faço sobre essa obsessão em fazer leis. Isso não é uma garantia de nada. Por outro lado, faz com quem vocês pensem que não podem tomar conta do que acontece com vocês, porque o sistema deve assumir essa responsabilidade. Então a vida das pessoas é colonizada por essa ideia da lei. O judiciário parece ser um grupo muito poderoso no Brasil. Isso não é necessariamente positivo.
Sul21: É uma necessidade para a justiça restaurativa andar lado a lado de políticas de justiça social ou pode ser instaurada sem reformas sociais? 
BP: Deveria ser, mas não estão necessariamente [lado a lado]. Como disse, em alguns países essa ideia foi colonizada pelo sistema judicial de um jeito que as lentes foram cooptadas. Você tem uma referência do sistema judicial de colocar os eventos em certas categorias. Esse é o crime, essa é a vítimas, esse é o agressor, lide com o caso. Você pode lidar de forma restaurativa, mas ainda está dentro dos limites do sistema. O que significa, por exemplo, que muitos casos que são trabalhados com a justiça restaurativa são crimes contra a propriedade. Porque eles estão dentro do sistema, não há nenhuma reflexão por parte dos mediadores sobre o que é esse crime, o que ele mostra para a sociedade, porque eu fui chamado para lidar com ele? Essas são perguntas sistêmicas, mas difíceis de serem perguntadas quando você está colonizado pelo sistema. Claro, em sistemas com a desigualdade como este, essas questões se tornam centrais. É necessário treinar os mediadores, e aqui os juízes, o que é algo totalmente diferente, sobre os problemas sistêmicos. Assim como quando o juiz trata de crimes sexuais, ele precisa conhecer a dinâmica desses casos, ele também precisaria conhecer a dinâmica do racismo, da desigualdade, de tudo. O mediador é parte da sociedade, ele não pode permanecer uma figura neutra. Deve estar muito consciente sobre o local em que está. Na Europa, a vítima geralmente é uma pessoa branca de classe média, como o mediador. O agressor nunca parece com o mediador. O que isso diz? É uma pergunta muito simples de se fazer aos mediadores para que eles comecem a refletir que, de alguma maneira, estão reforçando o sistema.

Respondendo à pergunta, sim, acho que esse deve ser o caminho a ser perseguido. É uma realidade? Não. Justiça social e justiça restaurativa nem sempre andam juntas, mas, para mim, isso é necessário.

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Livros & Informes

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  • AGUIAR, Carla Zamith Boin. Mediação e Justiça Restaurativa. São Paulo: Quartier Latin, 2009.
  • ALBUQUERQUE, Teresa Lancry de Gouveia de; ROBALO, Souza. Justiça Restaurativa: um caminho para a humanização do direito. Curitiba: Juruá, 2012. 304p.
  • AMSTUTZ, Lorraine Stutzman; MULLET, Judy H. Disciplina restaurativa para escolas: responsabilidade e ambientes de cuidado mútuo. Trad. Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2012.
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  • CERVINI, Raul. Os processos de descriminalização. 2. ed. rev. da tradução. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
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