Celas com superlotação, presídios com serviços de saúde e condições de higiene precários, presos sem condenação ou informações sobre seus processos. Os relatos de problemas crônicos do sistema carcerário não impactam mais parte dos brasileiros.
“Acho que esse é um dos índices mais flagrantes do abismo moral em que nos encontramos, sinal da nossa incapacidade de solidariedade e empatia, igualmente da estreiteza de nossos horizontes”, afirmou ao HuffPost Brasil o sociólogo Rafael Godoi.
Para o especialista, a ideia de penitenciárias como “depósito de pessoas”, de uma prisão massificada reforça o discurso punitivista.
No livro Fluxos em cadeia: as prisões em São Paulo na virada dos tempos, lançado pela editora Boitempo, o escritor reflete sobre o funcionamento das prisões a partir do cotidiano do sistema penitenciário paulista.
Doutor em sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), Godoi fez especialização em pesquisa etnográfica na Universidade Autônoma de Barcelona e, desde 2011, atua como agente da Pastoral Carcerária.
Na obra, o sociólogo quebra a divisão entre fora e dentro da prisão e afirma que o mesmo sistema de Justiça que prende pessoas é o que garante a nossa liberdade. “Aqueles vasos comunicantes, aquelas formas de articulação entre o dentro e o fora da prisão não são disfuncionais para a instituição. São esses vasos que precisamente fazem a prisão, tanto ou até mais que as muralhas, de todo modo, em composição com elas”, afirma.
Godoi defende o desencarceramento, a começar pelas milhares de pessoas presas que deveriam estar em liberdade, de acordo com a legislação já vigente e pelo fortalecimento da justiça restaurativa. Ele igualmente destaca a importância de fortalecer a Defensoria Pública não só por meio da contratação de mais profissionais, mas pela melhora da capacidade de identificar os problemas locais e de agir para solucioná-los.
No livro, o especialista critica o trabalho “protocolar” de promotores, defensores e juízes, dentro de um “imperativo de produtividade”. Ele aponta como causas para esse fenômeno a sobrecarga de processos, a precariedade dos quadros e uma forma de racionalidade que “avalia o desempenho da Justiça em termos meramente quantitativos”, além do distanciamento dos agentes do sistema de justiça da realidade da prisão.
Confira a íntegra da entrevista.
HuffPost Brasil: Por que chamar o livro de “Fluxos em Cadeia”?
Rafael Godoi: Com esse título procuro sintetizar minha perspectiva analítica. Ao invés de tomar a prisão como um lugar de isolamento e fixação, eu a abordo como um espaço de múltiplas circulações, como um espaço de fluxos e de fluxos que se concatenam, que se articulam, que convergem e se sobrepõem. Remeto, logo, ao fluxo dos próprios presos, que estão ali, em princípio, para passar um tempo; igualmente ao fluxo de pessoas pelos diversos e segmentados espaços do sistema, entre prisões diferentes e, mesmo no interior de uma só unidade, entre seus diferentes espaços, como a cela, o raio, a enfermaria, a oficina de trabalho, a escola, a cela de castigo, etc.
Finalmente, remeto além disso aos diversos fluxos que atravessam a prisão, que articulam e conectam o lado de dentro com o lado de fora, através do que venho chamando de vasos comunicantes, que podem ser cartas, visitas, jumbos, telefonemas, bilhetes, etc.
HuffPost Brasil: O que a pesquisa traz de novo em relação ao papel do governo junto à população carcerária?
Se há algo de novo talvez seja a própria maneira de figurar o contratempo do governo. A palavra governo no meu trabalho evoca menos os poderes políticos e partidários de uma ou outra administração, que uma tecnologia específica de poder, tal como formulada por Foucault nos seus cursos da segunda metade da década de 1970. Governo significa, então, um conjunto de tecnologias de gestão de populações, que se articula aos mecanismos de disciplinamento dos indivíduos e à soberania da lei.
Abordo a prisão, logo, como uma instituição que funciona no interior de um dispositivo de governo mais amplo, que abarca, em seus diversos escalões, a administração penitenciária, o sistema de justiça e a própria socialidade de presos, amigos e familiares.
Como possíveis ganhos desse tipo de abordagem, poderia destacar, de um lado, a possibilidade de colocar em evidência o fato de que essa prisão massificada do mundo contemporâneo mais gere populações que, como seria de se esperar, pune os crimes; de outro lado, destacaria a possibilidade de colocar em evidência o papel administrativo das agências do sistema de justiça, da magistratura, do Ministério Público, da Defensoria Pública, que, muitas vezes, se desresponsabilizam perante o escalabro da situação carcerária brasileira.
HuffPost Brasil: O senhor diz que facções como o PCC não apenas ocupam lacunas do Estado mas são fundamentais para o próprio funcionamento do sistema. De que forma?
O que digo é que aqueles vasos comunicantes, aquelas formas de articulação entre o dentro e o fora da prisão não são disfuncionais para a instituição, que são esses vasos que precisamente fazem a prisão, tanto ou até mais que as muralhas, de todo modo, em composição com elas.
No decorrer do livro, vou mostrando como são esses vasos comunicantes, principalmente aqueles por onde transitam familiares, que viabilizam o que chamo de regime de processamento e de sistema de abastecimento, isto é, que fazem os processos de execução andar e abastecem os presos com itens básicos de sobrevivência.
Mas eles não o fazem porque o Estado se retiraria ou se descarregaria de suas responsabilidades; o Estado está presente a todo momento regulando essas dinâmicas, impondo constrangimentos e injunções. O que tento mostrar é como o funcionamento cotidiano da prisão é feito dessa mobilização contínua de agentes diversos que estão dentro e fora dos muros. O PCC é só mais uma expressão disso, uma consequência dessa maneira de ser da prisão, mas a facção não totaliza esse fenômeno. Mais fundamentais que ela são esses vasos comunicantes.
HuffPost Brasil: Se tornou lugar-comum falar da precariedade das prisões. Ao mesmo tempo, não há esforços definitivos do Estado para melhorar a situação. O que fazer?
Desencarcerar. Não há outro caminho. Existem milhares de pessoas presas que deveriam ser postas em liberdade imediatamente e isso sem alterar uma linha da legislação penal.
Por exemplo, suspeitos de crimes não violentos, como o furto e o tráfico; condenados que já cumpriram os lapsos de progressão de pena para regime aberto ou para liberdade condicional; presas grávidas e mães de crianças pequenas; presos e presas com mais de sessenta anos; igualmente presos diagnosticados com uma alguma enfermidade mental que deveriam ser encaminhados para outro tipo de tratamento, etc.
Outra necessidade é investir continuamente na criação de outros modos de se fazer justiça, como por exemplo a justiça restaurativa, que embora não seja a solução para todos os males, tem sido um campo de experimentação fundamental para desestabilizar nossos hábitos de pensamento que vinculam automaticamente punição e prisão.
HuffPost Brasil: Há uma naturalização no Brasil das arbitrariedades no sistema prisional? Como vê esse fenômeno?
Acho sim que existe uma naturalização e eu a vejo com pesar, com muito pesar. Acho que esse é um dos índices mais flagrantes do abismo moral em que nos encontramos, sinal da nossa incapacidade de solidariedade e empatia, igualmente da estreiteza de nossos horizontes. O que me reconforta é que essa naturalização nunca é total e que, nos últimos anos, gradativamente pessoas, coletivos e organizações da sociedade civil estão se levantando contra essas arbitrariedades, documentando-as, denunciando-as e refletindo sobre alternativas.
HuffPost Brasil: O senhor afirma que há um trabalho protocolar padrão na maioria dos casos por parte tanto dos promotores quanto defensores públicos e dos juízes. Quais as causas?
Em primeiro lugar, existe algo que já em meados dos anos 1990 o sociólogo Luis Flávio Sapori designava como “justiça linha de montagem”, que articula as diferentes partes de um processo judicial numa comunidade de interesses, submetendo os princípios formais do devido processo legal aos imperativos de produtividade.
Isso decorre da colossal sobrecarga de processos, da precariedade de quadros das agências de justiça, mas igualmente dessa forma administrativa, governamental naquele sentido foucaultiano, de lidar com a matéria penal. Não é só uma questão de infraestrutura e contexto, mas, sobretudo, de uma particular forma de racionalidade, que avalia o desempenho da justiça em termos meramente quantitativos, sem atentar para a qualidade desse trabalho.
O outro elemento que destacaria é o grande distanciamento dos agentes do sistema de justiça da realidade da prisão. Embora a execução penal no Brasil seja jurisdicionalizada, embora seja obrigatório que juízes, promotores e defensores realizem inspeções periódicas nas unidades prisionais, muitos desses agentes não o fazem e quando o fazem, realizam apenas uma visita igualmente protocolar ao diretor do presídio, na sua sala, sem entrar em contato direto com os presos nas celas e nos raios.
Esse distanciamento é tão grande que até a Defensoria Pública de São Paulo, instituição responsável por zelar pelos interesses e direitos da maior parte da população carcerária, instituiu um sistema de bonificação para incentivar seus quadros a visitarem unidades prisionais, mesmo sendo essa uma das suas prerrogativas de função.
HuffPost Brasil: Como melhorar o acesso dos detentos às informações sobre seus processos?
Nesse ponto, novamente e em primeiro lugar, desencarcerando. Uma vez postos em liberdade, suspeitos e condenados terão melhores condições de se informar sobre seus processos e de neles intervir para que cheguem a algum termo.
Em segundo lugar é preciso ampliar e fortalecer a Defensoria Pública; igualmente rever sua parceria com a Ordem dos Advogados do Brasil, cujos advogados dativos costumam estabelecer pouco ou nenhum contato com seus defendidos. Mas é relevante esclarecer aqui o que entendo por fortalecer a Defensoria.
Obviamente trata-se da contratação de mais profissionais, mas trata-se, sobretudo, de fortalecer as relações da instituição com os setores da sociedade civil que lutaram por sua existência e que atualmente lutam contra o punitivismo exacerbado, setores que nos últimos anos, infelizmente, vêm sendo alijados dos processos decisórios dessa instituição.
Muitos defensores entenderam que o fortalecimento da Defensoria passava pela mera equiparação salarial com juízes e promotores. Sem desconsiderar essa questão, é preciso ter em mente que a força da defensoria depende mais de sua capilaridade na sociedade, de sua capacidade de identificar os problemas mais localizados e de agir para solucioná-los da maneira mais qualificada possível.
HuffPost Brasil: O senhor escreveu que o mesmo sistema de Justiça que prende pessoas é o que garante a nossa liberdade. Quais os efeitos desse distanciamento das pessoas das prisões?
Esse é um dos problemas estruturantes do livro: essa figuração da prisão como um mundo à parte, estranho, alheio. Todo o movimento do livro vai contra essa figuração. Meu propósito é justamente mostrar como essa prisão é nossa, como ela compõe e faz parte do nosso mundo, ela não é o mundo distante do “outro”, ela é, com todas as suas perversidades, o nosso modo imediato de fazer justiça.
De toda maneira, se esse distanciamento não condiz com a realidade, é preciso ter em mente que ele é continuamente construído e sustentado por expedientes muito concretos, como, por exemplo, o que chamo de processo de expansão interiorizada do parque penitenciário.
HuffPost Brasil: Que elementos do sistema penitenciário reforçam a imagem da prisão como um depósito de gente?
Esses elementos são vários. Particularmente importantes são o excesso de presos, a interiorização das unidades, a deterioração das instalações, a precariedade dos serviços educacionais e médicos e da assistência judiciária, etc. Tudo isso é muito flagrante e reforça essa imagem do depósito.
HuffPost Brasil: No que o Brasil se assemelha e se diferencia em relação a outros países com maiores índices de encarceramento?
O Brasil e, especialmente, o estado de São Paulo seguem de perto essa tendência global de massificação do encarceramento, em grande medida por causas, fatores e processos semelhantes aos que foram identificados em outras partes do mundo, em particular, nos Estados Unidos e na Europa Ocidental.
Na minha opinião, um mais apurado diagnóstico do encarceramento em massa contemporâneo passa pela compreensão do que vem acontecendo em sistemas prisionais que estão fora desse eixo do Atlântico Norte; passa pela compreensão do que ocorre no sistema prisional russo, no chinês, no brasileiro e em diversos países do sul global, onde está alocada a maior parte da população carcerária mundial.
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