São imensos os desafios brasileiros na segurança pública. A realidade é de 60 mil mortes violentas em 2014, com tendência de crescimento. As principais vítimas são jovens, negros, moradores das áreas mais pobres das cidades. A violência do homicídio é crescente nas cidades nordestinas, crescente no interior mais do que nas grandes capitais. Se pensarmos bem, a morte violenta cresceu nas regiões em que mais se reduziu a pobreza e melhoraram as condições de vida. Parece, portanto, que estamos diante de conflitos do crescimento e do desenvolvimento que se somam a um passivo social resultante de relações tradicionais. A morte de hoje é resultado de formas de desigualdade e de conflitos que se desenrolam hoje.
A observação do presente indica que a redução da pobreza ou o aumento do investimento estatal, conquanto prioridades inquestionáveis, necessitam de perspectivas de integração, nas quais as políticas de segurança sejam planejadas em sua especificidade e complexidade. Analisando duas tendências simultâneas, vê-se nos últimos quinze anos aumento do investimento estatal de segurança e também aumento da desigualdade racial nos resultados da polícia e da justiça criminal. Não se trata de estabelecer correlações diretas, mas de apontar tendências concomitantes que precisam de explicação.
Sobre homicídio, nota-se que o número de negros mortos é superior ao de brancos. Em relação aos que são punidos pela justiça, também a taxa de prisão de negros é superior à de brancos. Na ação policial, tanto nas prisões efetuadas em flagrante quanto entre os mortos em decorrência de ação policial, os negros são muito mais visados – contra eles a ação policial é mais dura e violenta.
É preciso explicar por que e como o aumento do investimento, a melhoria das condições de trabalho e capacitação das polícias (políticas fomentadas pelo Governo Federal) produz resultados tão diferentes para a segurança das pessoas brancas e das pessoas negras. Especialmente os jovens sentem-se pouco protegidos e muito perseguidos pela ação das polícias.
REFORMAS DA SEGURANÇA SÃO HOJE FUNDAMENTAIS PARA AVANÇAR NO DESENVOLVIMENTO SOCIAL
Na tentativa de interpretar este resultado, o policiamento ostensivo (na ordem atual, de responsabilidade das Polícias Militares) parece ser uma chave para a apuração desse resultado. É este modelo que tem recebido os maiores investimentos de governos e das polícias estaduais. A polícia comunitária, as patrulhas da Lei Maria da Penha, a justiça restaurativa ou comunitária, são projetos e práticas que surgiram no campo da segurança, tiveram algum apoio, mas acabaram não passando de programas minoritários e iniciativas-piloto. O mesmo se deu com os programas de prevenção.
E quais são os objetivos do policiamento ostensivo? Dos poucos dados a que se pode ter acesso, as prisões e mortes se concentram sobre crimes patrimoniais e delitos relativos a drogas. Trata-se, portanto, de um policiamento cuja principal preocupação é o controle da riqueza que circula por meios ilegais. E que se vale de meios duros e violentos (prisões sem processo e mortes em suposto confronto) para atingir este resultado. Ao passo em que permite que a vida fique vulnerável. Polícias como as de São Paulo e Rio de Janeiro consomem os maiores investimentos em segurança, e produzem cerca de 20% das mortes violentas produzidas nas capitais dos estados.
Um cinismo radical até poderia achar que vale a carnificina se os crimes diminuem e as pessoas se sentem seguras. Ora, mas não é o resultado apurado. Os crimes patrimoniais e o comércio de drogas não estão em crise, até porque dependem de um grau de organização que não pode ser atingido com o policiamento ostensivo, feito nas ruas. Nem a população das grandes cidades, especialmente das periferias, se sente segura. Uma grande parcela, ao contrário, considera que sua segurança diminui quando a polícia se aproxima, como indicam pesquisas de opinião sobre confiança nas polícias.
Os movimentos da juventude negra e que representam moradores de periferias e favelas pedem o fim da PM, por reconhecerem nesta instituição práticas abusivas e seletivas. Assim, reformas institucionais estão e estarão na pauta. É grande a probabilidade, no atual contexto do Congresso Nacional, de que surjam reformas dirigidas apenas por interesses corporativos e sem ampla participação social. Os grupos corporativos no interior das polícias podem achar que ganham ao tentar impedir reformas significativas, ou reduzindo o debate. Mas é uma ilusão de curto prazo, pois a perda de legitimidade das polícias continuará avançando, e perde-se a oportunidade de pactuar consensos mínimos sobre o que pode ser feito agora para reduzir as mortes violentas e melhorar a segurança dos públicos mais vulneráveis.
Reformas da segurança são hoje fundamentais para avançar no desenvolvimento social. Conquistas como promoção da igualdade racial, erradicação da miséria, empoderamento feminino, democratização da educação esbarram a olhos vistos nas barreiras ideológicas que impedem os gestores de políticas de segurança e, em especial, as elites policiais de incorporarem as pautas de democratização social. Por que é tão difícil conceber e realizar uma política eficaz de segurança para as mulheres, se há hoje tantas mulheres policiais? Por que é tão difícil aceitar a existência e mudar os padrões do racismo institucional, se há tantos policiais negros que poderiam contribuir para combater estereótipos, injustiças e avançar na construção de políticas de segurança para a população negra?
É hora de discutir com seriedade, dentro e fora das polícias, a diversificação dos modelos de policiamento para atender às demandas dos diferentes públicos, nos territórios diversos, especialmente onde as pessoas estão morrendo. Hora de debater sem medo as causas de redução de homicídios, e ter coragem de considerar que a solução rápida de conflitos dos cidadãos comuns realizada no interior das redes criminais mais organizadas pode ser uma dessas causas. Se assim for, é urgente que a segurança pública chame para si a tarefa estratégica de mediar conflitos, e que se prepare técnica e culturalmente para realizá-la. O desafio ainda é incluir todos no Estado de direito.
Jacqueline Sinhoretto é professora do Departamento de Sociologia da UFSCar, coordenadora do GEVAC, e pesquisadora de Produtividade do CNPq e do INCT-InEAC
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