Nas escolas se aprende que o Direito é algo produzido pelo homem para atender a uma necessidade básica da convivência social: viver em paz. Para alcançar essa finalidade, o Direito se propõe a resolver, pela composição ou pela imposição, os conflitos de interesses que se configurarem nas relações sociais. Desse modo, o Direito, antes de ser um agente conformador da convivência social é, e fundamentalmente deve sê-lo, um instrumento assegurador dessa convivência. Daí porque se buscar a solução dos conflitos com um grau, ainda que mínimo, de satisfação dos governados, para que se faça possível a paz social.
Esses conceitos, que os séculos de civilização construíram, soam vazios de significado quando confrontados com os números exorbitantes de processos judiciais que tramitam pelos cartórios por este Brasil afora. Passei a meditar seriamente sobre eles quando assumi o cargo de desembargadora do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, em março do ano passado e recebi um acervo de nada menos que 27 mil processos. Na maior parte dos casos, as pessoas pleiteavam benefícios previdenciários em torno de um salário mínimo. Ações propostas há mais de 10 anos, em que os segurados pediam pensão por morte, auxílio-doença, revisão de aposentadoria e amparo assistencial, ou seja, processos em que se pede que o Estado garanta o mínimo para sobrevivência. Situação semelhante existe não apenas nos demais gabinetes das turmas previdenciárias do TRF da 1ª Região, como nas varas e juizados especiais federais que cuidam dessa matéria.
Para tentar reverter ou minorar essa situação dramática, os órgãos que cuidam da política judiciária, como o Conselho Nacional de Justiça e o Conselho da Justiça Federal, têm concitado juízes e servidores a fazer um hercúleo esforço de julgamento, com estabelecimento de metas, mutirões e outras medidas para agilizar os processos. A Comissão de Reforma do Código de Processo Civil, em atitude honesta e bem intencionada, coloca como um dos seus pilares a segurança jurídica e prevê vários mecanismos para diminuir o número de recursos. As associações de juízes pedem o aumento dos tribunais, aumento dos juízes, dos funcionários. No entanto, só no meu gabinete dão entrada, mensalmente, de 800 a 1.000 processos novos.
Em momentos de reflexão chego a questionar sobre afinal, que Justiça é essa, à qual servimos com todo o ideal, que nos consome horas de estudo e leitura de processos e que demora mais de 10 anos para conceder uma pensão por morte a alguém? Como falar em paz social se entre o momento em que alguém declara que o cidadão possui um direito e o momento em que esse cidadão recebe o que lhe é devido, demoram-se anos a fio?
Ouso dizer que não há medida extraordinária, nem reforma processual que dê conta daquilo que os processualistas já chamaram de “explosão de litigiosidade” e que vem a ser essa impressionante sociedade conflitual em que vivemos. A sociedade hoje em dia está, é verdade, mais ciente dos seus direitos e por isso, dizem, demanda mais. Por outro lado, é fora de dúvidas que há demanda em excesso, o que torna o litígio a regra, quando a lógica do nosso sistema judiciário sempre o tratou como uma exceção. A sociedade do século XXI é a sociedade do conflito e não há e nem haverá Justiça, nem juízes suficientes para tanta disputa!
No âmbito da Previdência Social, no entanto, esse número espantoso de casos revela uma face cruel da omissão do Executivo, que transforma o Judiciário no gestor dos seus problemas ou administrador da sua dívida. Quando eu vejo sair uma caravana da nossa “Justiça Itinerante”, formada por abnegados juízes e servidores que vão aos lugares mais distantes do nosso imenso território, levando o aparato do Juizado de Pequenas Causas, eu me pergunto se não seria muito melhor para todos se, ao invés de juízes, essas caravanas estivessem levando os próprios funcionários e procuradores do INSS. Se eles resolvessem ao menos a metade dos pedidos dessas pessoas, quantas demandas não deixariam de chegar ao Judiciário!
A meu ver, é necessário que se mude o foco da solução do problema da litigiosidade: não se trata apenas de procurar meios e formas de agilizar a solução do conflito. É necessário eliminar-se o próprio conflito. Isso implica não apenas buscar outras formas de composição e conciliação, em que a intervenção do juiz se dê apenas em situações excepcionais. Implica exigir que os poderes Legislativo e Executivo exerçam o papel que lhes cabe em um Estado democrático e que, apenas por um desvirtuamento de foco, passaram a ser exercidas cumulativamente pelo Poder Judiciário. Isso também é exercício de cidadania.
Mônica Sifuentes é desembargadora do Tribunal Regional Federal da 1ª Região.
Revista Consultor Jurídico, 5 de outubro de 2011
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