"Justiça pra mim é o meu carro, doutor", disse X quando lhe foi perguntado o que achava que significava esse conceito. Respondeu assim pois tivera o seu carro - seu instrumento diário de trabalho - roubado e destruído algum tempo antes. Disse isso em frente ao adolescente que praticou o roubo, mas não em juízo.
O caso em questão, que aconteceu em Porto Alegre, está sendo conduzido sob a ótica da Justiça Restaurativa, prática que leva em conta as relações entre as partes, os danos causados e as conseqüências do ato criminoso.
Segundo Leoberto Brancher - juiz titular da 3ª Vara da Infância e Juventude de Porto Alegre - Justiça Restaurativa "é um novo modelo de justiça que assume as relações prejudicadas pela violência como preocupação central, e que se orienta pelas consequências e danos causados, e não pela definição de culpados e punições".
Para o juiz – um dos pioneiros da Justiça Restaurativa no Brasil -, a justiça com foco na punição, com um nível baixo de preocupação com a proteção social, leva à reincidência, à mera reprodução da violência e não diminui a criminalidade.
E essa mudança de foco proposta pela Justiça Restaurativa seria uma resposta à perda de contato da justiça tradicional com resultados reais na redução da violência e a autonomia e o diálogo entre as pessoas devem ser valorizados. "O crime não diminui e os criminosos reincidem. Sinal de que há algo errado com a justiça criminal", afirma.
O foco, portanto, está nas pessoas, e não na lei. Dentro do conceito da Justiça Restaurativa, os indivíduos devem assumir a responsabilidade - não só pelo ocorrido, mas pelo que vai acontecer no futuro. Reparar os danos, empoderar as pessoas, restaurar o tecido social rompido com o crime, reintegrar o ofensor à comunidade. “São diversas as orientações das práticas restaurativas”, diz Brancher.
Prática vem dos anos 70
A origem dessas práticas está nos anos 70, na América do Norte. "Um dos principais focos, em termos práticos, surgem nos EUA a partir dos anos 70, com experiências ocasionais de contatos promovidos entre apenados que queriam pedir perdão às suas vítimas", conta Brancher.
Ele lembra que o primeiro caso registrado de uso dessas idéias em um processo judicial foi no Canadá, quando a solução proposta para um caso de furto a residências foi que os jovens compensassem os danos causados com valores em dinheiro, com um posterior encontro e acordo com as vítimas.
Hoje, o conceito é recomendado pela ONU, Comunidade Européia, e é aplicado em diversos países. Na Europa, são cerca de mil programas em funcionamento, ainda que boa parte deles tenha dimensões reduzidas e experimentais.
Um marco na história da JR foi quando a Nova Zelândia institucionalizou, há 20 anos - através da nova Lei de Justiça Juvenil – a idéia de encontros entre vítimas e ofensores e reparação de danos. E os neozelandeses foram além. "Seguindo um costume dos aborígenes maoris, estabeleceram procedimentos inspirados em conselhos tribais, criando as conferências de justiça restaurativa, com ampla participação de pessoas da família e das comunidades, convidadas pelos envolvidos", conta Brancher.
É nessa idéia de participação comunitária e de horizontalidade da justiça que o modelo brasileiro se inspirou, diferentemente da Europa, onde apenas em países como Inglaterra, Irlanda, Bélgica, Finlândia e Noruega existem programas de conferência de grupos comunitários ou familiares.
Lidar com as consequências dos conflitos
Na prática, promovem-se encontros de mediação entre as partes envolvidas direta ou indiretamente no crime ou conflito com o objetivo de chegar a um acordo. No Brasil, esses encontros são chamados de Círculos Restaurativos. São previamente acordados e têm procedimentos pré-definidos.
Segundo Brancher, esse processo pode ser complementar ou alternativo aos processos judiciais tradicionais – cada lugar e situação utiliza a JR de maneira bastante distinta. Em geral, a Justiça Restaurativa tem sido mais aplicada em atos ou conflitos envolvendo crianças ou adolescentes. "É a justiça com o direito à palavra", diz Brancher.
"Acho que a história da Justiça Restaurativa no Brasil começa com os artigos e palestras do professor Pedro Scuro Neto. Entrei em contato com essas ideias em 1999. Ele foi a primeira pessoa que se dedicou a difundir essas idéias no Brasil", conta Brancher, que fez a primeira experiência prática somente em 2002, três anos antes de começar a implementá-la de maneira estruturada.
O jurista está à frente do Projeto Justiça para o Século XXI, que visa a difundir e aplicar a Justiça Restaurativa e tem o respaldo do Ministério da Justiça e o apoio do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud). O projeto é um dos três pilotos atualmente em experimentação no país.
Bons resultados
Em Porto Alegre, as práticas restaurativas têm sido aplicadas em fases anteriores à execução das medidas, dentro das instituições de atendimento a adolescentes em conflito com a lei, nas comunidades e até nas escolas, como um instrumento de mediação de conflitos e prevenção da judicialização.
As práticas têm tido sucesso. Uma pesquisa de monitoramento e avaliação do projeto apontou que, do total de adolescentes reincidentes encaminhados para a Central de Práticas Restaurativas, 80% não passaram por círculos restaurativos completos. Dos que passaram, apenas 23% reincidiram.
Outro indicador foi uma pesquisa de satisfação que revelou que 95% das vítimas ficaram satisfeitas com o processo, e 90% dos infratores também. De 2005 a 2007, mais de três mil pessoas participaram de procedimentos restaurativos – incluindo vítimas, agressores e comunidade.
Essa capilarização da Justiça Restaurativa em Porto Alegre demonstra a sua vocação comunitária, e não somente jurídica. "Existem tribunais ocultos em todos os espaços, como na família e na escola. Como transformar nossos tribunais internos?", questiona Brancher.
Uma das características da experiência brasileira é justamente a integração com o sistema educacional. Para Dominic Barter, especialista em Comunicação Não-Violenta (CNV) - um método que busca uma comunicação eficaz e empática -, que foi consultor e ajudou a sistematizar a metodologia da experiência brasileira, a parceria entre diversas instituições – principalmente a Educação e a Justiça – e o aspecto comunitário dos círculos restaurativos são um diferencial.
“Não é uma forma mais sutil de quem tem o poder mandar nos outros. A CNV aqui propicou essa horizontalidade, o compartilhamento desse poder. Por exemplo, em São Paulo, o círculo pode ser feito tanto no juizado quanto na favela”, diz
A prática da Justiça Restaurativa está presente em quatro escolas em Porto Alegre, e também no estado de São Paulo - em São Caetano do Sul e na capital. "Em São Caetano a experiência começou em 2005 e temos dados muito animadores. Noventa por cento dos casos chegam a acordos e 97% são cumpridos", diz o juiz Egberto Penido, designado para expandir o projeto de São Caetano para a capital paulista, onde 80% dos casos chegam a acordos e 85% são cumpridos.
Além da parte de mediação, o projeto tem dois outros eixos. Um deles é o trabalho para a mudança institucional dentro das escolas. O outro diz respeito à articulação com outros atores em torno do projeto, no "desafio de envolver todas as instituições que trabalham com a violência", de acordo com Penido. "Capacitando lideranças, trabalhamos para que esses princípios reverberem dentro do processo pedagógico da escola. Podemos discutir de maneira horizontal o código disciplinar da escola, por exemplo", diz.
Responsabilização: palavra-chave
Por se tratar de uma transformação cultural, o juiz Leoberto Brancher vê ainda muitas dificuldades para que a Justiça Restaurativa se estabeleça, inclusive como política pública. "Não há viabilidade sociológica para que isso aconteça ainda. Precisamos desinstalar os lugares de poder, avisar às pessoas que o poder é delas. Porque hoje vivemos em um Estado de tutela, onde as pessoas sempre esperam que alguém vá resolver os seus problemas", lamenta.
Segundo os preceitos da Justiça Restaurativa, o autor da violência deve assumir a responsabilidade ativamente, reconhecendo o mal causado e oferecendo à parte lesada uma maneira de compensá-lo. A comunidade (familiares, vizinhos etc), por sua vez, também se responsabiliza ao reconhecer a existência de conflitos e participar da solução.
De acordo com o "Manual de Práticas Restaurativas", publicado pelo J21, "a grande maioria das pessoas sente-se muito aliviada após falar sobre seus sentimentos e reclamar seus danos diante do autor do ocorrido, em um ambiente seguro e protegido. Assim, diminuem-se os efeitos traumáticos relacionados ao conflito e é possível também chegar a um acordo visando à reparação dos seus danos".
"A Justiça Restaurativa é politicamente viável. Existe o problema é a impunidade, mas também o da punição. As punições excessivas, que não se preocupam com as conseqüências da violência, são tão ineficazes quanto a proteção social pura e simples", afirma Dominic Barter.
Comunidade Segura. Bernardo Tonasse 30/03/2009.