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8 de jan. de 2009
Entrevista - Sebastian Scheerer
Entrevista concedida pelo professor Sebastian Scheerer, diretor do Instituto de Criminologia da Universidade de Hamburgo, Alemanha e professor do Departamento de Criminologia, a Paulo Queiroz (procurador da República e professor da Universidade Católica de Salvador), em 1° de agosto de 2000
Paulo Queiroz - Professor Scheerer, de que trata seu último texto "crítica da razão punitiva"?
Sebastian Scheerer - Desde o início da própria existência do Direito Penal, os intelectuais dedicaram-se à grande tarefa (bem remunerada) de explicar porque uma coisa negativa, como a pena, era justificada apesar do seu caráter violento. Quando chegou o iluminismo, dizendo que só pode ser justificado o que prova a sua necessidade social - Montesquieu e Beccaria estavam muito mais críticos do que a jurisprudência contemporânea - a maioria esmagadora dos intelectuais simplesmente corrompeu o potencial deste principio revolucionário e continuou explicando o "porquê" da necessidade do Direito Penal, em vez de perguntar "se" era realmente necessário. O meu texto tenta iniciar um debate aberto sobre a questão do "se", em vez do "porquê". A tese de partida: não tem necessidade alguma. É isto que está instigando um debate honesto nos meios dos intelectuais, não só da jurisprudência, que eu considero muito promissor.
Paulo Queiroz - Apesar de toda crítica que se faz, já há algum tempo, ao sistema penal, fato é que o sistema só tem se expandido sem qualquer limite ou critério.
Sebastian Scheerer - Nunca pensei que poderia ser diferente. O discurso crítico ainda está extremamente pobre tanto em termos de quantidade quanto em termos de qualidade. Mais de 99% dos escritos sobre a teoria da pena nem começam a atingir estas questões fundamentais com seriedade. Eles fazem parte do que Louk Hulsman (e outros) chamam de neoescolasticismo. Eles usam conceitos das ciências sociais como formas de dizer, e não como instrumentos analíticos. O que mudou desde Santo Agostinho é a retórica, não o estilo de pensamento. Os verdadeiros críticos que realmente põem em questão - intelectualmente - a própria existência do sistema penal são uns "gatos pingados". Se Deus quiser, futuras gerações vão lembrar deles como a gente lembra, mais ou menos, dos abolicionistas que, como uns "gatos pingados", também lutaram para o fim da escravidão. Infelizmente, aliás, este exemplo também ensina que existem instituições que permanecem muito tempo além da sua necessidade e mesmo da sua utilidade. Max Weber mostrou convincentemente que a perpetuação da instituição da escravidão na antiga Roma era a causa principal do colapso da economia romana - e em seguida do império romano in toto.
Paulo Queiroz - A que atribui o senhor tal expansão do sistema penal?
Sebastian Scheerer - O choque da última etapa da modernização do sistema econômico global cria oportunidades e frustrações diferentes e gera ondas de criminalidade do "colarinho branco", tanto como ondas de criminalidade da classe média e dos verdadeiros excluídos. A atenção relativa que o sistema judiciário dá a cada tipo destes ilegalismos, como os chamava Michel Foucault (ou rule breaking behaviour, como dizia Howard S. Becker) reponde a muitas pressões - uma das quais é, com certeza, um tipo de medo de ser sujeito a um tipo de vingança dos excluídos... os que lucram da hausse das bolsas estão aumentando, ao mesmo tempo, a Angst de que as coisas possam mudar bruscamente. Para combater este medo meio indefinido, eles reivindicam estratégias mais rígidas e punitivas para serem aplicadas aos outsiders. (Nem precisa falar do middle class squeeze, a situação precária da classe média que sempre recorre à repressão quando tem medo de cair de sua segurança relativa para o inferno do desemprego ou dos sem-teto...). Esperar ajuda através de um endurecimento da penalização é a "macumba" da classe média secularizada.
Paulo Queiroz - Há esperança?
Sebastian Scheerer - Sempre. Quanto a mim, os escritos tanto de Clifford Shearing (Canadá) como de John Braithwaite (Austrália), relatando e avaliando as múltiplas experiências com uma solução de conflitos fora do paradigma do Direito Penal me enchem de otimismo. Realmente, o choque do sistema presente está obsoleto. Pode ser substituído hoje. O que falta é uma conscientização no meio da sociedade civil. Os cientistas não têm esta tarefa. Melhor que se limitem a avaliar tanto as soluções penais quanto as da chamada JUSTIÇA RESTAURATIVA (restorative justice).
Paulo Queiroz - Como é hoje tratada a questão das drogas ilícitas na Alemanha e Europa, em especial, Suíça e Holanda?
Sebastian Scheerer - Na Alemanha, a política combate, em primeiro plano, o vício, e só em segundo plano as drogas. A gente está aprendendo que o perigo não reside nas substâncias, mas na fragilidade das pessoas que não conseguem desenvolver uma atitude madura frente às promessas e os perigos do uso. Uma pessoa forte pode usar qualquer tipo de droga sem correr grande risco de autodestruição. Uma pessoa fraca pode autodestruir-se até com uma droga soft como a maconha. Enquanto na Suíça, eles estão procurando o caminho deles, apesar de alguns fracassos, eles hoje em dia têm mais sucesso na prevenção, no acompanhamento e no tratamento do que os demais. Na Holanda, a classe média tem o melhor acesso às drogas e o menor risco, talvez, de criminalização. Parece que não cria problemas espetaculares. A vida continua. Normalmente: até melhor. É o país com o menor grau de hipocrisia. É também por isso que eu adoro o caminho holandês. É uma pena que o Conselho Internacional de Controle dos Narcóticos em Viena, divisão da ONU, dominada pelos Estados Unidos, continue fazendo pressão sobre a Holanda para retornar para a política homogeneizada do resto do mundo...
Paulo Queiroz - O senhor é a favor de uma política radical de descriminalização da produção, comércio e uso de tais substâncias?
Sebastian Scheerer - Como os carros e o equipamento de escalagem, de esqui ou de mergulhar, as drogas têm um potencial terrivelmente ambivalente: podemos desfrutar muito deles, mas também podemos morrer ou até matar. Não existe dúvida sobre os riscos. Os lobbies que baseiam a sua política sobre uma hipotética ausência de risco em algumas ou todas as drogas - não sei se eles existem realmente ou se são fantasmas criados pelos adversários da descriminalização - estes lobbies não merecem o menor respeito. A questão não é do risco, mas da distribuição do risco. O produtor do carro carrega a responsabilidade de produzir um carro conforme os padrões de segurança - o motorista carrega a responsabilidade de usar o carro não para matar mas para se locomover sem risco extraordinário para os demais cidadãos. O produtor da droga não deveria ser culpado do uso indevido das mesmas por parte dos consumidores destrutivos. A maioria dos consumidores de todos os tipos de drogas tem um comportamento sensato, que nem a grande maioria dos motoristas dos carros tem em relação a seus veículos. O problema é grave. Tanto na área automobilística quanto na área das drogas. Mas a solução dos problemas de trânsito não é a proibição geral dos carros. E a solução dos problemas do tráfico e consumo das drogas também não é. É a regulação, a educação, o controle - o Direito Penal, ao contrário, cria um mundo do crime que escapa a toda tentativa de educação e muito mais a toda tentativa de um controle administrativo, em termos da qualidade do produto, qualificação do comerciante, uso apropriado por parte do consumidor, atendimento ao consumidor preocupado ou enganado, etc.. A completa descriminalização não é nada revolucionária ou lunática, é uma coisa bem normal que está sendo proibida de acontecer...
Paulo Queiroz - A seu ver, qual deve ser o papel do Direito Penal no Estado contemporâneo?
Sebastian Scheerer - O Direito Penal deve ser uma coisa seríssima. Não pode ser um instrumento qualquer a serviço da política. Tem que ser uma coisa acima da política. Não deve mudar quando mudam os regimes políticos - da democracia para a ditadura e vice-versa. Só deve visar comportamentos absolutamente inaceitáveis em qualquer tipo de sociedade. Assassinato. Estupro. Atos atrozes cometidos por uma pessoa contra outra. Ponto final. Não, ponto final, não. Esta tese do Direito Penal mínimo, defendida hoje por colegas excelentíssimos como Alessandro Baratta e Wolfgang Naucke, e, menos radicalmente, por parte de Winfried Hassemer e de Peter-Alexis Albrecht, implica a sub-tese da absoluta necessidade do Direito Penal nesta área limitada. Eu acho - junto com alguns dos chamados abolicionistas como Louk Hulsman, Nils Christie e outros - que o Direito Penal não tem a estrutura adequada para lidar com as complexidades deste tipo de comportamento grave em situações dificílimas. Não é muito sensato deixar a burocracia jurídica tentar tratar destas situações. Existem métodos não-estatais para dar mais satisfação às vítimas, atribuir culpa e responsabilidades com mais certezas, e para chegar a um resultado positivo para todos os indivíduos e para o público atingido e interessado.
Paulo Queiroz - E que relação devem manter entre si política criminal, Direito Penal e Criminologia?
Sebastian Scheerer - O grande filósofo e penalista alemão Gustav Radbruch advertiu seus contemporâneos no começo do século XX que a política criminal deveria ser, em primeiro plano e durante muito tempo, uma política negativa, quer dizer: uma política que vise reduzir o mal que o sistema penal está fazendo em vez de continuar inventando, cada vez melhores métodos, para serem adicionados ao sistema... diminuindo o número de cadeias e sobretudo o número de prisioneiros dentro de uma região, um país, uma cidade. Melhor reduzir que aumentar. Melhor substituir que reduzir.
Paulo Queiroz - Como o senhor se definiria (minimalista, abolicionista)?
Sebastian Scheerer - Eu não gosto de me definir. Gosto de pensar. As coisas se excluem mutuamente, talvez. Quando encontro um argumento a favor da manutenção do Direito Penal eu sou minimalista até achar um argumento mais forte a favor da abolição. Não precisamos de seitas e ortodoxias. É preciso aprender a discutir com nenhum respeito às etiquetas, mas todo o respeito aos argumentos. Assim, a razão punitiva vai perder feio. Tomara que logo.
QUEIROZ, Paulo de Souza. Pensando o direito penal. Entrevista com SCHEERER, Sebastian. Boletim IBCCRIM. São Paulo, v. 8, n. 95, outubro 2000, p. 3-4.
“É chegada a hora de inverter o paradigma: mentes que amam e corações que pensam.” Barbara Meyer.
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Livros & Informes
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- AGUIAR, Carla Zamith Boin. Mediação e Justiça Restaurativa. São Paulo: Quartier Latin, 2009.
- ALBUQUERQUE, Teresa Lancry de Gouveia de; ROBALO, Souza. Justiça Restaurativa: um caminho para a humanização do direito. Curitiba: Juruá, 2012. 304p.
- AMSTUTZ, Lorraine Stutzman; MULLET, Judy H. Disciplina restaurativa para escolas: responsabilidade e ambientes de cuidado mútuo. Trad. Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2012.
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- CERVINI, Raul. Os processos de descriminalização. 2. ed. rev. da tradução. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
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