Por Raffaella da Porciuncula Pallamolla
Falar de justiça restaurativa não é tarefa fácil. As dificuldades são inúmeras e de diversas ordens. Enfrentar a desconfiança e resistência de muitos – quase sempre fruto do desconhecimento do tema; apresentar noções nem muito amplas e vagas e nem muito restritivas de um modelo de justiça que está em construção e em constante transformação; e refletir sobre uma proposta de modelo de justiça restaurativa adequado à cultura brasileira, são alguns dos desafios.
De uma maneira bastante geral, pode-se dizer que a justiça restaurativa é vista como uma forma de resolução de conflitos distinta da imposta pelo modelo de justiça penal tradicional. Possui princípios diferentes dos sustentados pelo modelo tradicional (baseado no processo penal e na imposição de penas) e propõe, dentre outras coisas, a participação da vítima e do ofensor (investigado/réu/apenado) na resolução do conflito, a reparação do dano decorrente do delito (simbólica e/ou materialmente) e a responsabilização do ofensor de maneira não estigmatizante e excludente.
Através da utilização de práticas de resolução de conflitos baseadas no diálogo entre aqueles direta e/ou indiretamente implicados no delito, busca-se alcançar um acordo sobre o que deve ser feito em relação à ofensa e ao dano causado à vítima. Pode-se ainda dizer que este modelo almeja a constrição do sistema de justiça criminal tradicional, sobretudo no que diz respeito à redução da aplicação de penas (principalmente da pena privativa de liberdade)
[1].
É certo que a justiça restaurativa encontra-se em voga em diversos países do ocidente. No entanto, se hoje é possível falar num modelo de justiça restaurativa com certa clareza e precisão, há algumas poucas décadas isso era impensável.
Foi diante da insuficiência do modelo institucionalizado de administração de conflitos oferecido pela justiça penal que práticas de justiça restaurativa, paulatinamente, foram sendo experimentadas em diversos países a partir da década de 1970. As primeiras e mais conhecidas experiências foram realizadas no Canadá (1974), Estados Unidos da América (1978), Noruega (1981) e Nova Zelândia (1989)
[2]. Destas, as da Noruega e da Nova Zelândia se desenvolveram no contexto da justiça juvenil, sendo que apenas esta última utilizou a
conferência de família (
family group conference) como prática restaurativa. Todas as demais experiências utilizaram a
mediação vítima-ofensor(VOM) e eram voltadas para casos envolvendo ofensores adulto
[3].
Com o passar das décadas, à mediação vítima-ofensor foram sendo agregadas outras práticas, a exemplo das conferências (inicialmente na Nova Zelândia) e dos círculos (primeiramente no Canadá) restaurativos (Van Ness, Daniel W. & Strong, Karen Heetderks, 2010, pp. 28-29).
Nesse sentido, pode-se se dizer que na década de 1970 a justiça restaurativa se encontrava em fase experimental. Já na década de 1980, tais experiências foram institucionalizadas e outras, em outros contextos, surgiram. Finalmente, na década seguinte (1990), a justiça restaurativa se expandiu e se articulou mais com o sistema de justiça criminal, de forma a ser inserida em todas as etapas do processo penal (JACCOUD, 2005, p. 166).
Evidentemente, esse desenvolvimento da justiça restaurativa não foi uniforme em todos os países. No Brasil, as primeiras experiências com justiça restaurativa foram implementadas somente em 2005, através do projeto “Promovendo Práticas Restaurativas no Sistema de Justiça Brasileiro”, organizado e financiado pelo Ministério da Justiça (Secretaria da Reforma do Judiciário), Secretaria Nacional de Direitos Humanos e pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Foram três projetos-piloto, um em Porto Alegre/RS, outro em São Caetano do Sul/SP e outro em Brasíli/DF. Os dois primeiros utilizam a prática do círculo restaurativo e se desenvolvem no âmbito da justiça juvenil, enquanto o último utiliza a mediação penal e é aplicado para casos de menor potencial ofensivo envolvendo ofensores adultos.
Até onde se tem conhecimento, destes projetos pioneiros, o de Porto Alegre e o de São Caetano do Sul passaram por remodelações e ampliações e seguem bastante ativos. Coincidentemente (ou não), estas duas experiências com justiça restaurativa, como salientado, são desenvolvidas no âmbito da justiça juvenil e utilizam a prática do círculo restaurativo.
Este é um ponto que merece atenção e é aqui que se começa a responder a pergunta proposta no título deste artigo:“afinal, qual a relação entre justiça restaurativa e mediação penal?”
O fato de os dois projetos de justiça restaurativa do Brasil com maior repercussão terem sido implementados na justiça juvenil e utilizado a prática do círculo restaurativo, pode explicar o fato de a justiça restaurativa no Brasil ser confundida ou melhor, identificada, muitas vezes, apenas como sendo aquela que aplica o
círculo restaurativo como
procedimento e apenas como um modelo adequado aos casos envolvendo crianças ou adolescentes em conflito com a lei
[4].
O fato é que, ao ser identificada com a prática do círculo, a justiça restaurativa no Brasil parece ter se fechado para a mediação (penal). É como se tivesse se pacificado a ideia de que a mediação pode ser aplicada a qualquer outraespécie de conflito (como, por exemplo, conflitos familiares ou envolvendo as partes de um contrato), como de fato já o é há algumas décadas, exceto o criminal. Isso se deveria ao fato de que a mediação possuiria princípios incompatíveis com a natureza dos casos criminais, os quais pressupõem um desiquilíbrio intrínseco entre as partes, o que impediria, por exemplo, que se estabelecesse uma igualdade entre elas.
É importante salientar que este entendimento também é sustentado por um dos autores pioneiros em Justiça Restaurativa, o americano Howard Zehr. Para ele, o próprio termo mediação é inadequado para casos criminais, pois “as vítimas de estupro ou mesmo de roubo não querem ser vistas como ‘partes de um conflito’” (2012, p. 19). Além disso, segundo Zehr (2012), a mediação pressupõe a utilização de uma linguagem neutra, a qual, novamente, não coadunaria com os princípios da justiça restaurativa: “para participar de um encontro de Justiça Restaurativa, na maioria dos casos o ofensor deve admitir algum grau de responsabilidade pela ofensa, e um elemento importante de tais programas é que se reconheça e se dê nome a tal ofensa” (Zehr, 2012, p. 19).
No entanto, o sustentado por Zehr se desfaz diante das experiências com mediação penal em vários países. De fato, a mediação é utilizada para lidar com diversos tipos de crimes, inclusive crimes graves como é o caso dos crimes sexuais. Por proporcionar um ambiente mais reservado (e seguro) à vítima, esta prática tem sido preferida por programas voltados a este tipo de crime.
De qualquer forma, o que se quer destacar neste pequeno arrazoado é, em primeiro lugar, a importância de se conceber a justiça restaurativa como um modelo de justiça que pode lançar mão de diversas práticas restaurativaspara ver alcançado seus objetivos – que podem ser os mais variados (instaurar o diálogo, buscar a reparação do dano, ouvir as necessidades de vítima e ofensor e, na medida do possível, atendê-las, etc.) e, em segundo lugar, a importância da prática da mediação para a justiça restaurativa.
Então, qual a relação entre mediação e justiça restaurativa? É certo que ambas possuem histórias diferentes mas que, ao final, cruzam-se. Conforme Miers (2003, p. 51), cada um dos conceitos é mais amplo e mais restrito do que o outro, simultaneamente. Assim, segundo este autor, por um lado a justiça restaurativa é mais restrita do que a mediação porque se aplica somente à esfera criminal, enquanto a mediação é utilizada em conflitos criminais e de outras esferas. Por outro lado, a justiça restaurativa é mais ampla em relação às possíveis respostas que o ofensor pode dar, alcançadas por outros meios que não a mediação (trabalhos prestados com a finalidade de reparar a vítima e, em alguns países, indenizações determinadas pelo tribunal, etc.), ao passo que a mediação, na esfera criminal, refere-se apenas às relações entre vítima e ofensor que são estabelecidas na mediação.
No entanto, é preciso salientar que a diferenciação feita por Miers – há mais de dez anos – encontra algumas limitações na atualidade, visto que existem programas de justiça restaurativa direcionados a conflitos que extrapolam os limites do sistema de justiça criminal, a exemplo de programas desenvolvidos para lidar com conflitos escolares, conflitos na comunidade, ou ainda, conflitos desencadeados no ambiente de trabalho.
Ainda assim, não há dúvida de que, dentre as inúmeras práticas restaurativas existentes, a mediação é a mais utilizada é também a que possui mais tempo de aplicação. (SCHIFF, 2003, pp. 317-318 e RAYE e ROBERTS, 2007, p. 213). Ela “consiste en el encuentro víctima-ofensor ayudadas por un mediador con el objetivo de llegar a un acuerdo reparador” (LARRAURI, 2004, p. 442).
Mais recentemente, observa-se algumas alterações na clássica formação da mediação, sendo cada vez mais comum a inclusão dos familiares e amigos da vítima e do ofensor, a fim de proporcionarem maior apoio aos implicados. Observa-se, igualmente, outra variação do processo chamada de shuttle diplomacy. Nesta variante, o mediador encontra-se com a vítima e o ofensor separadamente, sem que estes venham posteriormente a encontrar-se. Esta prática consiste numa mediação indireta, já que a comunicação entre vítima e ofensor é feita somente por intermédio do mediador. Ela é utilizada em diversos programas de mediação vítima-ofensor (VOM) na Europa e pode ser adequada para lidar com casos em que existe um sério desequilíbrio de poder entre as partes (RAYE e ROBERTS, 2007, p. 219).
Também surge, recentemente, a figura do comediador e de múltiplas vítimas e ofensores que participam do mesmo processo de mediação. Este último caso ocorre nas hipóteses quando ofensor ou vítima não podem ou não querem encontrar a outra parte, podendo-se formar grupos de vítimas que se encontrarão com um grupo de ofensores (que não são os mesmos que cometeram delitos contra aquelas vítimas), num processo substitutivo. Tal processo busca viabilizar o diálogo entre vítimas, ofensores e, eventualmente, representantes da comunidade, para falarem sobre as causas e consequências do delito (RAYE e ROBERTS, 2007, pp. 212, 216-7).
O processo de mediação entre vítima-ofensor visa possibilitar que estas partes se encontrem num ambiente seguro, estruturado e capaz de facilitar o diálogo. Antes de encontrarem-se, vítima e ofensor passam por conferências separadas com um mediador treinado que explica e avalia se ambos encontram-se preparados para o processo. Segue-se o encontro entre ambos, no qual o mediador comunica ao ofensor os impactos (físicos, emocionais e financeiros) sofridos pela vítima em razão do delito e o ofensor tem, então, a possibilidade de assumir sua responsabilidade no evento, enquanto a vítima recebe diretamente dele respostas sobre porquê e como o delito ocorreu. Depois desta troca de experiências, ambos acordam uma forma de reparar a vítima (material ou simbolicamente) (SCHIFF, 2003, p. 318). Claro que a descrição acima não pretende ser universal. A mediação, assim como as outras práticas restaurativas, deve ser flexível e poder ser adaptada às necessidades do caso concreto.
Com o uso da mediação, pretende-se desfazer os mitos e estereótipos relacionados tanto à vítima (alguém frágil e desempoderada) quanto ao ofensor (criminoso). Segundo Tony Peters e Ivo Aertsen, autores de um projeto de investigação sobre mediação na Bélgica, um dos efeitos mais importantes do processo de mediação é a destruição dos mitos com relação à vítima e ao infrator, o que decorre da participação ativa de ambos no processo restaurador:
Ambas partes involucradas en la experiencia de mediación ven un tipo de “justicia” en vez de, pasivamente, recibir “justicia”. Desde este enfoque, ambas partes se sienten más responsables y abandonan los estereotipos tradicionales de su forma de pensar: “el delincuente intratable” y la “víctima que se aprovecha” se convierten en “mitos” impracticables. (PETERS e AERTSEN, 1995, p. 140)
Assim, ao contrário do procedimento da justiça penal tradicional, que respalda e reproduz os mitos sobre o autor do crime através da seleção de informações dirigidas à acusação e à sentença, na mediação o enfoque está nas informações que possam aproximar as partes em conflito a fim de chegarem a um acordo (PETERS e AERTSEN, 1995, p. 141).
A mediação sem dúvida é uma forma diferente de encarar o evento crime. Ela traz os implicados para o cerne da discussão a fim de que participem do processo de justiça e troquem experiências, e com isto auxilia as partes a compreenderem a dimensão social do crime (conflito). Todavia, por inserir esta complexidade na justiça criminal, a mediação não se apresenta como uma prática simples, mas sim como algo que demanda muito dos que dela participam, pois “exige que os indivíduos (quer isoladamente ou como membros da sociedade) encarem e reconheçam os interesses dos outros como condicionantes das suas próprias acções ou omissões” (MIERS, 2003, p. 51).
Voltando ao Brasil, as práticas restaurativas recentemente receberam novo impulso com o advento da Emenda n. 1 à Resolução 125 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) de janeiro de 2013. O ato normativo do CNJ estabelece que os Tribunais de Justiça, deverão criar “Núcleos Permanentes de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos”, e estes poderão implementar e estimular a implementação de programas de mediação penal ou outra prática restaurativa, visando sua utilização nos conflitos que sejam da competência dos Juizados Especiais Criminais e dos Juizados da Infância e da Juventude.
O interessante é que a Resolução confere lugar de destaque para a mediação penal, pois é a única prática restaurativa que é especificada. Talvez, e só talvez, isso indique que é chegada a hora de implementar novas experiências em justiça restaurativa, experiências que levem em consideração muitas décadas de produção de conhecimento e de prática em mediação – seja em âmbito penal ou não – provenientes dos mais diversos contextos, inclusive do brasileiro, pois aqui, a mediação em âmbito não-criminal já passou da fase experimental.
REFERÊNCIAS
JACCOUD, Mylène. Princípios, Tendências e Procedimentos que cercam a Justiça Restaurativa. In SLAKMON, C., R. DE VITTO, R. GOMES PINTO (org.). Justiça Restaurativa. Brasília/DF: Ministério da Justiça e PNUD, 2005, pp. 163-188.
LARRAURI, Elena. Tendencias actuales en la justicia restauradora. In ÁLVARES, Fernando Pérez (ed.). SERTA In memoriam Alexandri Baratta. Salamanca: Universidad de Salamanca – Aquilafuente, 2004, pp. 439-464.
MIERS, David. Um estudo comparado de sistemas. In Relatório DIKÊ – Proteção e Promoção dos Direitos das Vítimas de Crime no âmbito da Decisão – Quadro relativo ao Estatuto da Vítima em Processo Penal. Lisboa, set. de 2003, pp. 45-60.
PETERS, Tony e AERTSEN, Ivo. Mediación para la reparación: presentación y discusión de un proyecto de investigación-accion. Cuaderno del Instituto Vasco de Criminología San Sebastián, nº 8, Extraordinario, diciembre, 1995, pp. 129-146.
RAYE, B. E. and ROBERTS, A. W. Restorative processes. In Handbook of Restorative Justice. Cullompton, UK; Portland, USA: Willan Publishing, 2007, pp. 211-227.
SCHIFF, Mara. Models, Challenges and The Promise of Restorative Conferencing Strategies. . In VON HIRSCH, A.; ROBERTS, J.; BOTTOMS, A.; ROACH, K.; SCHIFF, M. (eds.). Restorative Justice & Criminal Justice: Competing or Reconcilable Paradigms? Oxford and Portland, Oregon: Hart Publishing, 2003, pp. 315-338.
VAN NESS, Daniel W. E Strong, Karen Heetderks. Restoring Justice: an introduction to Retorative Justice. New Providence, NJ: LexisNexis, Anderson Publishing, 2010, 4a ed.
ZEHR, Howard. Justiça Restaurativa. São Paulo: Palas Athena, 2012.
__________
[1] Para uma diferenciação aprofundada dos modelos, conferir: PALLAMOLLA, 2009; ZEHR, 2008; ROCHE, 2007; WALGRAVE, 1993, apud JACCOUD, 2005.
[2] Sobre a cronologia dos programas pioneiros de justiça restaurativa, conferir: Van Ness, Daniel W. E Strong, Karen Heetderks. Restoring Justice: an introduction to Retorative Justice. New Providence, NJ: LexisNexis, Anderson Publishing, 2010, 4
a ed.
[3] Importante salientar que as primeiras experiências, em sua grande maioria, foram de iniciativa de agentes da condicional (
probation offices) e de atores da comunidade. No caso do Canadá e dos EUA, a organização cristã dos Menonitas desempenhou importante papel. Para mais detalhes sobre as experiências inicias, conferir: Van Ness, Daniel W. E Strong, Karen Heetderks. Restoring Justice: an introduction to Retorative Justice. New Providence, NJ: LexisNexis, Anderson Publishing, 2010, 4
a ed.
[4] Esse desenvolvimento focado no sistema de justiça juvenil pode ser explicado, por exemplo, pela maior flexibilidade outorgada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente aos atores responsáveis pela aplicação das medidas socioeducativas em relação as escassas brechas legais que possibilitam a aplicação da justiça restaurativa na justiça penal de adultos (por exemplo, via artigo 66 do Código Penal e artigos 71 e seguintes da Lei 9.099/95), mas isso é tema para outro artigo.