Com efeito, as medidas mais importantes do novo programa do Governo para a área da justiça e da segurança são a revisão do Código de Processo Civil, do Código Penal e do Código de Processo Penal (CPP). No Código de Processo Civil, o Governo quer introduzir uma nova "reengenharia dos procedimentos", com base na desmaterialização do processo, na oralidade e na simplicidade. Mas o Governo aprovou a reforma deste mesmo Código, na parte da acção executiva, pela Lei 18/2008 e pelo Decreto--Lei 226/2008 e, na parte dos recursos, pela Lei 6/2007 e pelo Decreto-Lei 303/2007. Ora, o mesmo Governo vai agora "rever" a revisão do CPC de 2007/08, confessando o fracasso da reforma do Processo Civil que fez na anterior legislatura, não obstante ter aprovado quatro diplomas para o efeito. Os efeitos catastróficos desta deriva legislativa são óbvios: incerteza para os tribunais e insegurança para os cidadãos e as empresas. A pergunta que qualquer cidadão sensato faz é esta: por que razão não foi a "reengenharia" do Processo Civil feita no seu devido tempo em 2007?
A questão é mais grave em relação ao Código Penal e ao Código de Processo Penal. O Governo propõe-se na nova legislatura alterar no Código Penal o regime da reincidência, das medidas de segurança e da pena relativamente indeterminada e introduzir no Código de Processo Penal todas as "correcções que se apurem necessárias" (sic!). O Governo foi avisado da inadequação prática e até da inconstitucionalidade de que enfermavam algumas soluções consagradas nas reformas do Código Penal e do Código de Processo Penal de 2007. Mas naquela altura o Governo decidiu ignorar, do alto da sua maioria absoluta, todos os avisos dos especialistas e dos profissionais da justiça. Agora, o Governo volta atrás e quer fazer o que não fez na anterior legislatura. A história repete-se: também em 1998 o Governo do PS publicou uma reforma do CPP em Agosto e com uma vacatio desleal para os operadores judiciários. Também em 2000 o Governo do PS teve de rever a infeliz reforma do CPP de 1998.
No tocante ao caso específico da corrupção, o programa do Governo ou promete o que não pode fazer (suprimir os offshores ou criar "códigos de conduta" para entidades que não tutela) ou se fica pela promessa vaga do "reforço dos meios afectos ao combate". Para apresentar estas soluções, mais valia o silêncio. O Governo não propõe nada de concreto e eficaz, como não fez nada de útil para combater a corrupção na anterior legislatura. Aprovou soluções impraticáveis e inconstitucionais através da Lei 94/2009, que criou uma pena fiscal para os contribuintes comuns, mas deixou impunes os verdadeiros fautores. Que assim vão continuar.
As vítimas de crimes são apontadas como alvo preferencial da política do Governo, prometendo-se um "programa nacional de mediação vítima-infractor". Mas foi este Governo que aprovou a nova lei de mediação criminal, a Lei 27/2007. Por que razão o Governo não previu nessa lei de mediação o "programa de mediação" que agora quer criar? A resposta só pode ser a de que o Governo admite que a lei minimalista de 2007 ficou aquém do objectivo.
A formação dos magistrados também é objecto do programa do Governo. O Governo propõe-se rever a lei do Centro de Estudos Judiciários, com vista a assegurar uma "formação permanente", "plural e diversificada" e "mais especializada" dos magistrados. Mas o Governo aprovou na anterior legislatura uma reforma do Centro de Estudos Judiciários pela Lei 2/2008. A insistência na reforma do CEJ mostra que a revisão de 2008 foi insatisfatória. Por que razão não fez o Governo em 2008 a reforma cabal do CEJ que urgia?
A outra profissão forense, os advogados, também vai sofrer a invectiva do Governo. Está prometida a "redefinição da figura" do defensor oficioso. Não se diz preto no branco em que consiste ela, mas é bem sabido qual é o propósito da reformulação do estatuto do defensor. Confrontado com o gigantesco aumento dos honorários pagos pelas defesas oficiosas, o Governo quer criar uma nova carreira de funcionários públicos, o defensor público, ou seja, o advogado funcionário público. Mas o Governo aprovou na anterior legislatura a Lei 47/2007, que reviu o apoio judiciário, incluindo a defesa oficiosa. Porque não fez o Governo na altura a dita "redefinição" que agora se propõe fazer?
A situação catastrófica dos tribunais de trabalho e do comércio merece a atenção do programa do Governo. Aliás, a organização, o funcionamento e a gestão dos tribunais são tratados com grande destaque no dito programa. Mas foi este mesmo Governo que aprovou a Lei 52/2008, que prevê uma nova orgânica e um novo modelo de gestão e funcionamento dos tribunais. Decorreu apenas um ano sobre a publicação da lei de 2008 e já o Governo reconhece a insuficiência da reforma judiciária.
A mortandade nas estradas do País não passou despercebida aos olhos do Governo. A prioridade agora é a introdução da carta por pontos no Código da Estrada. Já no programa do XVII Governo Constitucional, também do PS, se dizia que se iria criar uma "política de segurança preventiva". Passaram quatro anos e meio e a medida mais eficaz de prevenção da sinistralidade rodoviária, a carta por pontos, foi esquecida. O Governo fez uma profunda alteração do Código da Estrada através do Decreto- -Lei 44/2005 e não se lembrou da carta por pontos nessa altura.
Por fim, o programa do Governo mostra ainda uma outra faceta, a da demagogia pura. O programa propõe-se aprovar regras que já vigoram, criar organismos que já existem. Por exemplo, a brigada de investigação tecnológica na PJ já existe, chama-se Unidade de Telecomunicações e Informática e foi criada pela Lei 37/2008. Outro exemplo é a previsão de celeridade processual e da justiça restaurativa para os crimes de violência doméstica. Mas estas novidades já foram introduzidas pela Lei 112/2009. Em síntese, o Governo propõe-se fazer o que já está feito. Ou o Governo anda distraído ou pensa que os portugueses andam distraídos. Em nenhum dos casos é bom prenúncio da legislatura que vem aí.
Fonte: DN Opinião.
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