Justiça restaurativa, método de resolução de conflitos que reúne infrator, vítima e comunidade, é aplicada no Brasil até em casos de homicídio
MURILO ZARDO
ENVIADO ESPECIAL A PORTO ALEGRE
DANTE FERRASOLI
DA EDITORIA DE TREINAMENTO
Aos 17 anos, Adilson Rodrigues Alves dizia ter um sonho. “Queria montar minha própria facção criminosa.” Criado em uma família de três filhos no Bom Jesus, um dos bairros mais violentos de Porto Alegre, é o único deles ainda vivo. O irmão mais velho, usuário de drogas, morreu após contrair Aids. O mais novo, em um confronto com a polícia. Do pai, tem mais lembranças preso do que solto.
Havia trocado os antigos amigos do centro de tradições gaúchas e do centro de umbanda que frequentava pela “galera do crime”. Para mostrar aos novos amigos que era “homem”, roubou o carro de um casal usando uma arma de brinquedo no bairro Santana. Foi como aproveitou as férias escolares de 2006.
Dias depois, quando passeava no carro roubado, foi apreendido numa blitz e levado à Fundação de Atendimento Socioeducativo do Rio Grande do Sul (Fase), equivalente à Fundação Casa de São Paulo.
A internação de Adilson comoveu familiares e amigos. Eles organizaram um abaixo-assinado na comunidade do Bom Jesus para mostrar ao juiz responsável que o jovem havia cometido um erro corrigível.
“Chegou à minha mesa um documento com mais de cem assinaturas. Dizia que ele era um cara legal, que os amigos lamentavam o ocorrido. Decidimos chamar algumas dessas pessoas para se encontrar com ele”, recorda o juiz Leoberto Brancher, titular da Vara da Infância e da Juventude de Caxias do Sul (RS), que era magistrado em Porto Alegre à época.
O encontro de Adilson com seus antigos amigos mudou sua vida. “Havia me afastado deles porque achava que aquilo não combinava. Eu, um cara do mal, cometendo atos infracionais, com pessoas do bem”, afirma. “Eram pessoas que sabiam que eu não tinha nascido bandido. Aquilo me comoveu. Garanti que iria voltar como outro cara.”
Na reunião, ele se comprometeu a arrumar emprego e retomar os estudos. Três meses depois, quando foi liberado, começou a cumprir as promessas. Um encontro com as vítimas do assalto chegou a ser proposto. Adilson estava pronto. O casal que assaltara não.
Um novo paradigma
Adilson Rodrigues Alves é um entre as centenas de adolescentes infratores que, desde 2005, passaram pela Central de Práticas Restaurativas, órgão da Justiça gaúcha em Porto Alegre. A chamada justiça restaurativa acredita que a simples punição ao criminoso não o reintegra à sociedade nem ajuda as vítimas a superar o trauma. Por isso, propõe encontros entre infrator, agredido e pessoas do convívio de ambos para discutir formas de reparação do dano causado sem que haja a suspensão do processo judicial, que pode ocorrer caso o acordo seja cumprido.
“O grande potencial da justiça restaurativa está em convocar outros participantes para buscar resolver o conflito. Ela traz resultados tanto para a relação específica entre vítima e ofensor quanto para a comunidade que os envolve”, argumenta Brancher, um dos primeiros juízes a adotar a prática no país.
Há duas condições para que os encontros ocorram: a participação precisa ser voluntária, e o infrator deve reconhecer que cometeu o delito. “Não é uma prática ‘boazinha’. Há jovens que preferem apenas cumprir a medida socioeducativa a ter que encarar as consequências de suas ações”, diz o juiz Egberto Penido, titular da 1ª Vara Especial da Infância e da Juventude de São Paulo.
Os acordos devem definir algo que o infrator tem de fazer para reparar o dano causado, como um trabalho comunitário, a participação em uma atividade educativa ou uma compensação financeira, por exemplo. O importante é que a ação também sirva para ajudar o ofensor a deixar a vida criminosa.
Prefeito de Caxias do Sul (RS), Alceu Barbosa Velho, regulamentou a justiça restaurativa na cidade.
A ideia não é nova. Surgiu nos anos 70 com religiosos, juízes e pessoas atuantes no meio prisional de países como Nova Zelândia, Canadá e Estados Unidos. Hoje, iniciativas nesse sentido são comuns em vários lugares do mundo, em especial em relação a infrações cometidas por jovens.
Nos 15 Estados onde o Judiciário aplica a justiça restaurativa no Brasil, ela ocorre principalmente em varas da Infância e da Juventude. É o exemplo de São Paulo, onde a prática é usada em 15 cidades, na maioria das vezes para resolver conflitos escolares.
O Rio Grande do Sul inovou ao empregar o método em casos mais graves. Brancher afirma que isso é possível na área da infância e da juventude graças ao mecanismo da remissão. “Se houver acordo entre as partes, o juiz pode homologar a dispensa ou a suspensão do processo. Isso pode se dar inclusive nos casos mais graves, não há restrição quanto ao tipo de infração”, explica ele.
Homicídio
Eduardo*, 17, e Mariana*, 15, eram namorados há alguns anos em Osório, cidade do litoral do Rio Grande do Sul, a 95 km de Porto Alegre. Um dia, em meio a uma crise de ciúmes, Eduardo atirou na namorada, que morreu. O jovem foi apreendido e levado para a Fase, onde ficou internado até completar 19 anos.
Enquanto Eduardo cumpria a medida socioeducativa, seus familiares pediram para se encontrar com a família da vítima. Havia um grande temor de que o irmão de Mariana buscasse vingança no momento em que Eduardo fosse solto.
Por determinação da juíza Vera Deboni, titular da 3ª Vara da Infância e da Juventude de Porto Alegre, foi realizado um círculo restaurativo com todos os envolvidos. Foi acordado que as famílias tentariam conviver em paz e que Eduardo buscaria um emprego quando estivesse em liberdade.
“As duas famílias puderam fazer um diálogo muito importante. Não superaram a dor, mas superaram a perspectiva da vingança”, diz a magistrada.
Howard Zehr, professor de justiça restaurativa da Eastern Mennonite University, nos EUA, cita pesquisas que mostram que a justiça restaurativa contribui para a redução de medos e traumas das vítimas. “Ela também colabora na diminuição da reincidência de criminosos”, diz Zehr, um dos pioneiros da prática.
Em agosto passado, o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Ricardo Lewandowski, assinou um acordo para aumentar a implementação da justiça restaurativa no país. ”É um caminho que ajuda o Judiciário a contribuir de forma mais efetiva para a paz social”, afirma ele.
(*) Nomes fictícios.



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