O que mais chamou atenção nos ataques do PCC, em maio, não foi a ousadia. Foi a escalada da violência. Ousadia, a facção já havia mostrado há cinco anos, quando promoveu a maior rebelião generalizada do sistema prisional brasileiro. Desta vez, o PCC ampliou suas formas de ação, passando de motins simultâneos para fechamento do comércio, atentados a bancos, fóruns e bases policiais e assassinatos de agentes públicos. E, ao disseminar o medo generalizado, levou as autoridades ao constrangimento de negociar uma trégua, provocando uma colisão entre responsáveis pela segurança pública e autoridades penitenciárias.
O confronto foi vencido pela linha dura, defensora do aumento da repressão indiscriminada, e resultou numa vendetta não oficialmente assumida e numa demonstração patética de prepotência pelo secretário da Segurança, em depoimento na Assembléia. Diagnósticos sobre a falência do sistema prisional e as desigualdades sociais do país foram apresentados em profusão e com variados enviesamentos ideológicos. Prognósticos foram feitos por comentaristas televisivos com a mesma consistência metodológica dos especialistas em tarô e jogo de búzios.
Terminado o mês de maio, contudo, a página parece ter sido virada e o debate da crise da segurança refluiu, para ser retomado com o advento de novas ondas de violência, novos ataques de facções criminosas e novas rebeliões num sistema prisional com um déficit de 155 mil vagas. O que se pode extrair disso tudo?
A primeira lição é de caráter programático e vai na contramão do senso comum, advertindo autoridades, legisladores e operadores jurídicos para o risco da tentação da “legislação do pânico”. Por serem feitas em momento de crise e insegurança, as “leis penais de ocasião” tendem a deformar o sistema de penas da ordem jurídica.
Também é preciso afastar a sedução tanto pela importação do modelo americano de política de “tolerância zero” e encarceramento em massa quanto pela tendência de explicar a explosão de criminalidade como se ela se limitasse a um problema geográfico, circunscrito a favelas, ou se restringisse aos segmentos pobres da população. “Há um espaço social sombrio, difícil de ser devassado e desbaratado, onde se tramam as relações que nutrem o crime organizado e que atravessam as instituições e o tecido social. O enfrentamento desse tipo de crime é muito mais questão de inteligência do que de repressão”, afirma Fernando Salla, do Núcleo de Estudos da Violência, após lembrar que a desarticulação do crime organizado exige efetiva articulação entre os poderes municipais, estaduais e federal e o fim das disputas políticas sobre esferas de competência.
Essa redefinição de papéis e funções, por sua vez, está atrelada a dois outros fatores complementares. Um deles é o comando desse processo. O outro diz respeito à política macroeconômica em vigor.
O primeiro fator envolve disputas partidárias. Ao afastar dos principais gabinetes do Palácio do Planalto a responsabilidade pela coordenação do Sistema Único de Segurança, para evitar seja o desgaste do Presidente da República com eventuais fracassos, seja o fortalecimento político de dirigentes não vinculados ao chefe da Casa Civil, entre 2003 e 2005, o governo comprometeu uma importante iniciativa para pensar a questão da segurança fora do imediatismo das situações de emergência.
O segundo fator decorre da inflexibilidade da política macroeconômica. Justificada em nome da austeridade monetária e da responsabilidade fiscal, ela levou ao corte indiscriminado de investimentos, à redução sem critérios de despesas de custeio e ao contingenciamento generalizado de verbas orçamentárias. Em 2005, o Ministério da Justiça investiu 5,5% dos R$ 413 milhões previstos no Orçamento da União para o Fundo Nacional de Segurança Pública e o Plano Nacional de Segurança Pública utilizou 28,7% da verba prevista de R$ 1,5 bilhão.
Em princípio, é compreensível a conversão do rigor fiscal em prioridade, tal a tradição de irresponsabilidade e malversação no gasto público. Sem esse equilíbrio, além disso, o país não conseguiria assegurar os “fundamentos macroeconômicos” para crescer, condição necessária para geração de empregos e inclusão social. Mas, ao tentar obtê-lo a qualquer preço, o governo converteu o superávit orçamentário num fim em si e não numa estratégia que lhe permitisse maximizar a aplicação de recursos escassos, com base numa definição de prioridades no plano social.
No plano jurídico, por fim, os ataques do PCC recolocaram o desafio da reforma da ordem jurídica — entre outros motivos porque o crime organizado tem atuação transterritorial e é estruturado de modo reticular, enquanto as legislações penal e processual penal, originariamente concebidas com base nas diretrizes criminais estabelecidas em 1903 pela Liga das Nações, são voltadas a crimes de caráter interindividual e praticados em contextos sociais de baixa complexidade.
Não se trata de aumentar penas indiscriminadamente nem de esvaziar o garantismo processual em nome do rigor punitivo, mas de se identificar tipos novos e mais complexos de criminalidade. E isso exige conhecer melhor as especificidades dos objetos a serem disciplinados, antes de se criar mais tipos penais segundo as estruturas convencionais da legislação em vigor. Para assegurar a certeza da punição, são necessárias leis que ampliem as penas alternativas para crimes não violentos, viabilizem experiências de JUSTIÇA RESTAURATIVA e reservem penas privativas de liberdade para apenados de maior periculosidade.
Independentemente dessas medidas de curto e médio prazo, a questão de fundo para a eficácia das políticas de segurança pública, do sistema prisional e da ordem jurídica continua relacionada à superação das desigualdades sociais. Ao corroer os mecanismos de formação de identidades coletivas, a exclusão social propicia uma cultura de desagregação, a banalização da violência e a sobreposição do privado ao público. A exclusão esgarça o contrato social, dilui laços de convivência, rompe vínculos de cidadania. Em contextos como esse, não há um mínimo de integração social que permita à ordem jurídica ser universalmente acatada e a sociedade aparece “não apenas como imprevisível, mas hostil”. Ela tende a se estilhaçar “em micro-agrupamentos que passam a definir para si o que é certo e errado, não havendo entre eles um direito comum”, resultando daí “as subculturas do crime, as minisociedades drogadas e os anéis de corrupção”, como dizia Wanderley Guilherme dos Santos em texto seminal (cf. As Razões da Desordem, Rocco, 1993, p. 109).
E se a resposta institucional à explosão da violência for mais violência, sob a forma da intolerância e retaliação, como se viu após os ataques do PCC, a conseqüência é a indiferenciação entre os responsáveis pela ordem e aqueles que as afrontam e, por tabela, a ruptura do vínculo entre sistema de segurança, Justiça e direitos fundamentais. O que se tem aí é o que alguns manuais de sociologia chamam anomia e outros, de estado da natureza.
José Eduardo Faria, Professor titular da Faculdade de Direito da USP e membro do conselho editorial do International Institute for Sociology of Law.
FARIA, José Eduardo. Violência e crise. Boletim IBCCRIM. São Paulo, v.14, n.164, p. 2-3, jul. 2006.
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