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15 de dez. de 2017

Justiça Restaurativa Sistêmica: supera a ideia punitivista e é ainda mais inovadora

Justiça Restaurativa Sistêmica: supera a ideia punitivista e é ainda mais inovadora

Certamente você conhece a Justiça Restaurativa, uma técnica utilizada para solucionar conflitos, onde autor e vítima se aproximam, buscando restaurar as relações e os eventuais danos sofridos.
Esse conceito comumente utilizado para designar a Justiça Restaurativa, surge da Resolução 12/2002 da ONU, que apresenta algumas característica do que vem a ser o instituto. No Brasil, mais recentemente, o CNJ, por meio da Resolução 225/2016, também buscou traçar algumas diretivas, não se distanciando do documento da ONU.
Da mesma forma você também já deve ter lido ou vivenciado a aplicação sistêmica do direito, ou as constelações familiares aplicadas no judiciário.[1] É um método fenomenológico, apresentado por Bert Hellinger e embasado nas leis sistêmicas da hierarquia, pertencimento e equilíbrio.
A proposta aqui não visa discutir a Justiça Restaurativa, tampouco abordar o movimento das constelações familiares no judiciário, mas apresentar uma proposta de correlação entre ambos, o que pode ser útil na busca por uma cultura da paz.
Contudo, é preciso fazer uma observação sobre a ideia que tradicionalmente embasa a Justiça Restaurativa, a qual seria um método ou técnica que busca solucionar conflitos e restaurar os danos que esse conflito trouxe. Penso que a proposta restaurativa é muito mais ampla. Primeiro, por que não é possível, muitas vezes, solucionar um conflito e, também, por que a pacificação social é uma busca inalcançável, eis que o desvio/conflito social é natural e até mesmo necessário para que se evolua.[2]
Pensa-se que a ideia restaurativa deva auxiliar os envolvidos e a comunidade à compreender os motivos do conflito, o que exige, quase sempre, uma auto compreensão e a compreensão do outro. A solução do conflito é secundária e poderá vir com a percepção dos múltiplos fatores que circundam e motivam as relações e o desvio.
Nesse sentido acentua Marcelo Nalesso Salmaso, que também percebe a Justiça Restaurativa “não como uma técnica de solução de conflitos – apesar de conter um leque delas –, mas como uma verdadeira mudança dos paradigmas de convivência, voltada à conscientização dos fatores relacionais, institucionais e sociais motivadores da violência e da transgressão, de forma a envolver todos os integrantes da sociedade como sujeitos protagonistas da transformação rumo a uma sociedade mais justa e humana”.[3]
A partir dessa perspectiva, tem-se que o instituto da restauração deve flexibilizar algumas questões, tais como a participação, frente a frente, de autor e vítima, por exemplo. Se a ideia deve ultrapassar a reparação, não se pode perder a oportunidade de trazer o autor do fato à reflexão, por que a vítima não se disponibiliza a participar deste processo.
A Justiça Restaurativa provém de uma abordagem sistêmica, como inserido no artigo 1, da Resolução 225/2016, do CNJ:
“A Justiça Restaurativa constitui-se um conjunto ordenado e sistêmico de princípios, métodos, técnicas e atividades próprias, que visa à conscientização sobre os fatores relacionais, institucionais e sociais motivadores de conflitos e violência…”
Essa visão é que possibilita a utilização das leis sistêmicas na Justiça Restaurativa, mesmo que sem a participação da vítima e, em algumas situações, até mesmo sem a participação do autor do fato.
A Justiça Restaurativa “tende à resolução do conflito ou situação‑problema subjacente, numa visão sistêmica (…). Diz‑se sistêmica uma abordagem capaz de identificar as diversas partes fracionárias de um conjunto, relacionando‑as simultaneamente com ele, de modo a compreendê‑las sempre como interdependentes do sistema como um todo. Essa compreensão sistêmica deve orientar o olhar, seja com relação às situações de conflito em si, seja com relação ao contexto em que será buscada a solução”.[4]
E é dessa possível e necessária correlação que surge o que se denomina de Justiça Restaurativa Sistêmica, ou seja, uma abordagem restaurativa a partir das leis sistêmicas de Bert Hellinger (hierarquia, pertencimento e equilíbrio).
Deixa-se claro que essa abordagem não afasta qualquer outra técnica, tal como o círculo da paz, mas amplia a proposta restaurativa, numa flexibilização de alguns predicados trazidos pela Resolução 225/CNJ. É, como toda visão sistêmica, integradora e comprometida em desvelar as questões ocultas do desvio.
Nessa quadra da história, precisa é a ressalva de que se “falar em Justiça Restaurativa e eleger um procedimento que tem raiz em práticas ancestrais é uma ousadia. É possível considerar esta ousadia e ver seus resultados em mudanças reais e efetivas na vida de pessoas e instituições. Mas só se dá quando há coerência no que se apresenta como uma outra forma de se lidar com o justo e o injusto, com a humanidade e suas contradições”.[5]
Ou, como lembra Zehr, “a Justiça Restaurativa não é mediação. Tal qual os programas de mediação, muitos programas de Justiça Restaurativa são desenhados em torno da possibilidade de um encontro facilitado entre vítimas, ofensores e, possivelmente, membros da comunidade. No entanto, nem sempre se escolhe realizar o encontro, nem seria apropriado. Além disso, as abordagens restaurativas são importantes quando o ofensor não foi pego ou quando uma das partes não se dispõe ou não pode participar. Portanto, a abordagem restaurativa não se limita a um encontro”.[6]
Se a Justiça Restaurativa já é uma proposta que supera a ideia punitivista, a Justiça Restaurativa Sistêmica é ainda mais inovadora, ao possibilitar que os envolvidos desejem muito mais do que a reparação, mas a compreensão dos motivos do conflito, abstraindo culpas e punições, na busca por uma cultura da paz.
Fabiano Oldoni é Professor, Advogado, Pesquisador com linha de pesquisa em Justiça Restaurativa e métodos de pacificação de conflitos, Doutorando pela Universidade do Minho/Portugal.
Márcia Sarubbi Lippmann é  Professora, Pesquisadora em mediação e conciliação, facilitadora em constelação sistêmica.

[1] Sobre o assunto, ver o pioneiro livro no Brasil: OLDONI, Fabiano; GIRARDI, Maria Fernanda G.; LIPPMANN, Márcia Sarubbi. Direito Sistêmico: Aplicação das leis sistêmicas de Bert Hellinger ao Direito de Família e ao Direito Penal. Joinville: Manuscritos, 2017.
[2] Nesse sentido Émile Durkheim.
[3] SALMASO, Marcelo Nalesso. Uma mudança de paradigma e o ideal voltado à construção de uma cultura de pazIn CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça Restaurativa: Horizontes a partir da Resolução CNJ 225. 1. Ed., Brasília: CNJ, 2016, p. 22.
[4] FLORES, Ana Paula Pereira; BRANCHER, Leoberto. Por uma Justiça Restaurativa para o século 21.In CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça Restaurativa: Horizontes a partir da Resolução CNJ 225. 1. Ed., Brasília: CNJ, 2016, p. 99.
[5] PENIDO, Egberto de Almeida; MUMME, Monica Maria Ribeiro; ROCHA, Vanessa Aufiero da.Justiça Restaurativa e sua humanidade profunda diálogos com a resolução 225/2016 do CNJ.InCONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça Restaurativa: Horizontes a partir da Resolução CNJ 225. 1. Ed., Brasília: CNJ, 2016, p. 195.
[6] ZEHR, Howard. Justiça Restaurativa. Tradução de Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2012. p. 18-19.

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Livros & Informes

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  • AGUIAR, Carla Zamith Boin. Mediação e Justiça Restaurativa. São Paulo: Quartier Latin, 2009.
  • ALBUQUERQUE, Teresa Lancry de Gouveia de; ROBALO, Souza. Justiça Restaurativa: um caminho para a humanização do direito. Curitiba: Juruá, 2012. 304p.
  • AMSTUTZ, Lorraine Stutzman; MULLET, Judy H. Disciplina restaurativa para escolas: responsabilidade e ambientes de cuidado mútuo. Trad. Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2012.
  • AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de; CARVALHO, Salo de. A Crise do Processo Penal e as Novas Formas de Administração da Justiça Criminal. Porto Alegre: Notadez, 2006.
  • CERVINI, Raul. Os processos de descriminalização. 2. ed. rev. da tradução. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
  • FERREIRA, Francisco Amado. Justiça Restaurativa: Natureza. Finalidades e Instrumentos. Coimbra: Coimbra, 2006.
  • GERBER, Daniel; DORNELLES, Marcelo Lemos. Juizados Especiais Criminais Lei n.º 9.099/95: comentários e críticas ao modelo consensual penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.
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