Pesquisar este blog

9 de nov. de 2015

Brasil tem papel crucial no avanço da Justiça Restaurativa, diz especialista

O Brasil tem um papel fundamental na disseminação da Justiça Restaurativa pelo mundo, cujos métodos devem ser utilizados em questões de distribuição de terras, racismo, pobreza, homofobia, sexismo e desrespeito histórico das populações indígenas. A opinião é do professor João Salm, do Departamento de Justiça Criminal da Governors State University, em Chicago (EUA), co-diretor do Centro de Justiça Restaurativa do Skidmore College, em Nova York e membro do comitê de direção do Centro de Justiça Restaurativa na Universidade Simon Fraser, em Vancouver, Canadá.

Salm é um dos coordenadores da cooperação internacional entre o Canadá, Estados Unidos e Brasil na área da Justiça Restaurativa e, desde março de 2014, trabalha como consultor para o Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas (PNUD) em Fiji e Ilhas Salomão, fornecendo suporte técnico adaptado às organizações públicas e sem fins lucrativos na área da justiça social e reparadora.

Em funcionamento há cerca de 10 anos no Brasil, a prática da Justiça Restaurativa tem se expandido pelo país. Conhecida como uma perspectiva de solução de conflitos que prima pela criatividade e sensibilidade na escuta das vítimas e dos ofensores, consiste na adoção de medidas voltadas a solucionar situações de conflito e violência, mediante a aproximação entre vítima, agressor, suas famílias e a sociedade na reparação dos danos causados por um crime ou infração.

Para o professor Salm, é preciso investir em pesquisa, na avaliação de programas e na educação para a Justiça Restaurativa, especialmente porque neste momento de expansão ela corre risco de se desvirtuar e não ser implementada com a qualidade que necessita.

Contribuir com o desenvolvimento da Justiça Restaurativa é uma das diretrizes de gestão do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para o biênio 2015-2016. O propósito foi apresentado na Portaria nº 16/2015, assinada pelo ministro Ricardo Lewandowski e, em cumprimento a essa diretriz, o CNJ instituiu um grupo de trabalho para desenvolver estudos e propor medidas para contribuir com o desenvolvimento da Justiça Restaurativa no país.

Acompanhe, abaixo, os principais trechos da entrevista com o especialista:

CNJ - Qual é a experiência do Canadá com o uso da Justiça Restaurativa?

Salm – A Justiça Restaurativa tem em sua raiz um paradigma ecológico e coletivo, muito celebrado pelas várias comunidades indígenas da América do Norte, por meio de um pensar e jeito de viver, de maneira mais ou menos implícita nos princípios e práticas restaurativas. Há, na literatura e dentro de várias narrativas históricas daquele país, evidências que mostram o quanto os indígenas e imigrantes da Europa e dos EUA se assemelhavam na busca da paz e do viver em harmonia. Já na sua origem, o país chamado Kanata (Canadá) tem como significado, vila, assentamento ou terra, na língua de Saint Lawerence Iroquoian. 

O Canadá está na vanguarda do campo da Justiça Restaurativa. Foi o primeiro país do mundo a oferecer um programa de reconciliação vítima/agressor, processo iniciado pela Comunidade Menonita em Kitchener, Ontário. O país é especialista em uma das práticas da Justiça Restaurativa, a Mediação Vitima Ofensor (VOM), em situações de ofensas violentas, pós-encarceramento. Importante ressaltar aqui que entendemos a Mediação Vitima Ofensor como uma simples prática dentro das muitas práticas da Justiça Restaurativa.

A canadense Susan Underwood, uma das especialistas no assunto, está em Florianópolis para uma palestra sobre a mediação entre vítima e ofensor, relatando os trabalhos realizados com jovens e ex-prisioneiros na província de British Columbia. Além disso, o Canadá adota o conceito aborígene de círculos de paz (cura). Estes círculos se tornaram parte integrante da programação progressiva no sistema de Justiça. Durante a última década, a Simon Fraser University (SFU) tem feito contribuições significativas para a promoção do paradigma da Justiça Restaurativa como uma nova possibilidade de aplicação da justiça.

Mais recentemente, o Poder Judiciário tem colaborado com organizações comunitárias para a implementação de alguns bem-sucedidos programas no Canada.

CNJ – Quais seriam esses programas implementados pelo Poder Judiciário canadense?

Salm - No Canadá, os indígenas são a maioria daqueles que passam pelo sistema criminal. Mas esse país tem feito um significativo avanço ao criar uma legislação em que leva casos que envolvem jovens a práticas de Justiça Restaurativa nas comunidades e não mais para os fóruns. Exemplo desta legislação é o Youth Criminal Justice Act (YCJA).

O Communities Embracing Restorative Action (CERA) é um programa de Justiça juvenil, de natureza preventiva, que serve as comunidades de Vancouver e cidades vizinhas, desde o final dos anos 90. Este programa é direcionado a jovens menores de 18 anos que foram acusados de envolvimento em um dano. Dois co-facilitadores reúnem-se em um processo de círculo com o acusado, a pessoa prejudicada e sua comunidade. Se um acordo de resolução é feito, o jovem evita processo criminal e voluntários do CERA dão suporte para que o acordo termine com êxito.

O Protocolo de Justiça Restaurativa da Nova Escócia (NSRJP) é outro exemplo. Ele é composto por processos utilizados tanto para jovens como adultos. O encaminhamento se dá pela polícia (65 % das referências), promotores (30% das referências - antes do julgamento) e Cortes (5 % das referências). Os processos de Justiça Restaurativa são administrados por várias organizações de base comunitária contratadas pelo governo, por toda província de Nova Escócia. Cada programa deve aderir ao Protocolo de Justiça Restaurativa da Nova Escócia (NSRJP), que estabelece padrões de entrega de serviço e critérios de elegibilidade do participante, de seleção do tipo de processo (por exemplo, círculo sentença, sessão de prestação de contas) e para a redação dos acordos e supervisão.

CNJ - O senhor acredita que as práticas brasileiras de Justiça Restaurativa estão alinhadas com os métodos desenvolvidos em outros países?

Salm - Em muitos lugares do Brasil, a Justiça Restaurativa se desenvolve de maneira coerente com o restante do mundo, inclusive EUA e Canadá, graças ao investimento que vem sendo feito pelo Judiciário de alguns estados. Mas é preciso investir em pesquisa, no pensar crítico, na avaliação de programas e na educação para a Justiça Restaurativa, pois, neste momento de expansão, ela corre o risco de se desvirtuar e não ser implementada com a qualidade que necessita. Precisamos produzir conhecimento e publicar estudos na área no Brasil. Como falei anteriormente, penso que o Brasil tem hoje um papel crucial no movimento da Justiça Restaurativa no mundo, não somente como um método, mas como uma possibilidade de Justiça para entendermos as injustiças sociais e econômicas do país.

A Justiça Restaurativa, nos seus princípios e nas suas práticas, nos lugares em que está sendo implementada com profundidade, tem possibilitado ao Brasil repensar políticas públicas para o avanço em questões de direitos humanos. A Justiça Restaurativa no Brasil deve discutir questões de distribuição de terras, de racismo, de pobreza, de falta de moradia, de fome, de homofobia, de sexismo, de desrespeito histórico e permanente das populações indígenas.

CNJ – Quais os cuidados que o senhor acredita que o Poder Judiciário deve ter na disseminação das práticas restaurativas?

Salm - Não se deve reduzir a Justiça Restaurativa a nenhuma instituição em particular ou meramente a uma técnica. Advogo sempre que a Justiça Restaurativa deve ser coproduzida, ou seja, várias instituições (escolas, família, agências governamentais, ONGs, comunidades religiosas, Judiciário, polícia) devem colaborar para implementá-la, sendo a comunidade o espaço ideal para o seu desenvolvimento, em outras palavras: a Justiça deve ser construída diariamente, por todos e por todas as instituições, num zelo pelo bem público, sempre.

Deve ser buscado o conhecimento indígena brasileiro sobre Justiça. O Brasil é composto basicamente por três grupos: descendentes de europeus, afrodescendentes e índios. No entanto, ao buscar a Justiça, nós a reduzimos a somente ao que os europeus nos ensinaram sobre o que e como buscar a Justiça, dentro de uma instituição. Mas e os índios e os afrodescendentes? O que é Justiça para eles? Como eles buscam a Justiça? Precisamos descobrir e aprender, para que possamos construir uma Justiça mais plural, inclusiva, refletindo a diversidade brasileira.

A Justiça Restaurativa não pode reproduzir a injustiça, somente servindo e rotulando aqueles que são os já conhecidos clientes da justiça criminal, negros e pobres. Não devemos chamar estas práticas de Justiça Restaurativa, pois ela estaria perpetuando um sistema seletivo e rotulante, no qual se busca punir aqueles que já foram punidos pela história de opressão do nosso país. Existe muita gente no Brasil chamando e igualando qualquer coisa à Justiça Restaurativa, como mediação, negociação, serviço comunitário, justiça comunitária, reabilitação, entre outras coisas. É preciso conhecer melhor a Justiça Restaurativa para que haja um compromisso sério com os fundamentos filosóficos, teóricos e práticos desta possibilidade de Justiça.

Agência CNJ de Notícias. 09/11/2015.

Nenhum comentário:

“É chegada a hora de inverter o paradigma: mentes que amam e corações que pensam.” Barbara Meyer.

“Se você é neutro em situações de injustiça, você escolhe o lado opressor.” Desmond Tutu.

“Perdoar não é esquecer, isso é Amnésia. Perdoar é se lembrar sem se ferir e sem sofrer. Isso é cura. Por isso é uma decisão, não um sentimento.” Desconhecido.

“Chorar não significa se arrepender, se arrepender é mudar de Atitude.” Desconhecido.

"A educação e o ensino são as mais poderosas armas que podes usar para mudar o mundo ... se podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar." (N. Mandela).

"As utopias se tornam realidades a partir do momento em que começam a luta por elas." (Maria Lúcia Karam).


“A verdadeira viagem de descobrimento consiste não em procurar novas terras, mas ver com novos olhos”
Marcel Proust


Livros & Informes

  • ACHUTTI, Daniel. Modelos Contemporâneos de Justiça Criminal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.
  • AGUIAR, Carla Zamith Boin. Mediação e Justiça Restaurativa. São Paulo: Quartier Latin, 2009.
  • ALBUQUERQUE, Teresa Lancry de Gouveia de; ROBALO, Souza. Justiça Restaurativa: um caminho para a humanização do direito. Curitiba: Juruá, 2012. 304p.
  • AMSTUTZ, Lorraine Stutzman; MULLET, Judy H. Disciplina restaurativa para escolas: responsabilidade e ambientes de cuidado mútuo. Trad. Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2012.
  • AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de; CARVALHO, Salo de. A Crise do Processo Penal e as Novas Formas de Administração da Justiça Criminal. Porto Alegre: Notadez, 2006.
  • CERVINI, Raul. Os processos de descriminalização. 2. ed. rev. da tradução. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
  • FERREIRA, Francisco Amado. Justiça Restaurativa: Natureza. Finalidades e Instrumentos. Coimbra: Coimbra, 2006.
  • GERBER, Daniel; DORNELLES, Marcelo Lemos. Juizados Especiais Criminais Lei n.º 9.099/95: comentários e críticas ao modelo consensual penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.
  • Justiça Restaurativa. Revista Sub Judice - Justiça e Sociedade, n. 37, Out./Dez. 2006, Editora Almedina.
  • KARAM. Maria Lúcia. Juizados Especiais Criminais: a concretização antecipada do poder de punir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
  • KONZEN, Afonso Armando. Justiça Restaurativa e Ato Infracional: Desvelando Sentidos no Itinerário da Alteridade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.
  • LEITE, André Lamas. A Mediação Penal de Adultos: um novo paradigma de justiça? analise crítica da lei n. 21/2007, de 12 de junho. Coimbra: Editora Coimbra, 2008.
  • MAZZILLI NETO, Ranieri. Os caminhos do Sistema Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007.
  • MOLINA, Antonio García-Pablos de; GOMES, Luiz Fávio. Criminologia. Coord. Rogério Sanches Cunha. 6. ed. rev., atual e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
  • MULLER, Jean Marie. Não-violência na educação. Trad. de Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Atenas, 2006.
  • OLIVEIRA, Ana Sofia Schmidt de. A Vítima e o Direito Penal: uma abordagem do movimento vitimológico e de seu impacto no direito penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.
  • PALLAMOLLA, Raffaella da Porciuncula. Justiça restaurativa: da teoria à prática. São Paulo: IBCCRIM, 2009. p. (Monografias, 52).
  • PRANIS, Kay. Processos Circulares. Tradução de Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2012.
  • RAMIDOFF, Mario Luiz. Sinase - Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo - Comentários À Lei N. 12.594, de 18 de janeiro de 2012. São Paulo: Saraiva, 2012.
  • ROLIM, Marcos. A Síndrome da Rainha Vermelha: Policiamento e segurança pública no século XXI. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 2006.
  • ROSA, Alexandre Morais da. Introdução Crítica ao Ato Infracional - Princípios e Garantias Constitucionais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
  • SABADELL, Ana Lúcia. Manual de Sociologia Jurídica: Introdução a uma Leitura Externa do Direito. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
  • SALIBA, Marcelo Gonçalves. Justiça Restaurativa e Paradigma Punitivo. Curitiba: Juruá, 2009.
  • SANTANA, Selma Pereira de. Justiça Restaurativa: A Reparação como Conseqüência Jurídico-Penal Autônoma do Delito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
  • SANTOS, Juarez Cirino dos. A Criminologia Radical. 2. ed. Curitiba: Lumen Juris/ICPC, 2006.
  • SCURO NETO, Pedro. Sociologia Geral e Jurídica : introdução à lógica jurídica, instituições do Direito, evolução e controle social. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
  • SHECAIRA, Sérgio Salomão; Sá, Alvino Augusto de (orgs.). Criminologia e os Problemas da Atualidade. São Paulo: Atlas, 2008.
  • SICA, Leonardo. Justiça Restaurativa e Mediação Penal - O Novo Modelo de Justiça Criminal e de Gestão do Crime. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
  • SLAKMON, Catherine; MACHADO, Maíra Rocha; BOTTINI, Pierpaolo Cruz (Orgs.). Novas direções na governança da justiça e da segurança. Brasília-DF: Ministério da Justiça, 2006.
  • SLAKMON, Catherine; VITTO, Renato Campos Pinto De; PINTO, Renato Sócrates Gomes (org.). Justiça Restaurativa: Coletânea de artigos. Brasília: Ministério da Justiça e PNUD, 2005.
  • SÁ, Alvino Augusto de. Criminologia Clínica e Psicologia Criminal. prefácio Carlos Vico Manãs. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
  • SÁ, Alvino Augusto de; SHECAIRA, Sérgio Salomão (Orgs.). Criminologia e os Problemas da Atualidade. São Paulo: Atlas, 2008.
  • VASCONCELOS, Carlos Eduardo de. Mediação de conflitos e práticas restaurativas. São Paulo: Método, 2008.
  • VEZZULLA, Juan Carlos. A Mediação de Conflitos com Adolescentes Autores de Ato Infracional. Florianópolis: Habitus, 2006.
  • WUNDERLICH, Alexandre; CARVALHO, Salo (org.). Novos Diálogos sobre os Juizados Especiais Criminais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.
  • WUNDERLICH, Alexandre; CARVALHO, Salo de. Dialogos sobre a Justiça Dialogal: Teses e Antiteses do Processo de Informalização. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002.
  • ZEHR, Howard. Justiça Restaurativa. Tradução de Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2012.
  • ZEHR, Howard. Trocando as lentes: um novo foco sobre o crime e a justiça. Tradução de Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2008.