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21 de mai. de 2012

A justiça restauradora


Negociadores sul-africanos pós-apartheid optaram por anistiar quem admitisse publicamente ter violado direitos humanos, aplicando uma forma de justiça não destinada a ‘punir’, mas a ‘curar’.


Demond Tutu - O Estado de S. Paulo
Durante o período que antecedeu as eleições, os negociadores tiveram de decidir como lidar com o horrendo legado do passado recente. Algumas pessoas, em especial as que tinham feito parte do regime do apartheid, defendiam que uma anistia geral deveria ser promulgada a todos, de modo – assim imaginavam – que o passado seria simplesmente esquecido, não tornando reféns o presente e o futuro. Infelizmente, não existe mágica capaz de nos fazer dizer “agora, vamos esquecer o passado”, que, então esquecido, morreria em silêncio. O passado tem uma capacidade inata de tirar todo tipo de esqueleto do armário para atormentar o presente. Perguntem ao general Pinochet.
Em 1997, Mandela recebia de Tutu o relatório final da Comissão de Reconciliação e Verdade, presidida - Walter Dhladhla/AFP
Walter Dhladhla/AFP
Em 1997, Mandela recebia de Tutu o relatório final da Comissão de Reconciliação e Verdade, presidida
George Santayana declarava frequentemente: “Quem esquece o passado está fadado a repeti-lo”. Além disso, a anistia geral faz a vítima ser vítima uma segunda vez ao oficializar ou o que aconteceu – na verdade, não aconteceu – ou, ainda pior, o que teve pequena importância, de modo que as vítimas não vejam um encerramento da questão e acabem nutrindo ressentimentos que podem ter consequências nefastas para a paz e para a estabilidade por causa da agonia que envenena o espírito e faz ansiar pelo dia da vingança.
Já outros pensavam que o caminho mais fácil seria seguir o exemplo do tribunal de Nuremberg e levar a julgamento todos aqueles publicamente culpados ou suspeitos de cometer graves violações dos direitos humanos. Nuremberg aconteceu porque os aliados derrotaram os nazistas e optaram por impor o que chamaram de justiça dos vencedores. Em nosso caso, nem o governo promotor do apartheid nem os movimentos de libertação do Congresso Nacional Africano (CNA) e do Congresso Pan-Africanista (CPA) tinham a possibilidade de derrotar o lado adversário. Havia um empate em termos militares. É quase certo que as forças de segurança do regime do apartheid conseguiriam debelar qualquer plano de ataque pelo qual, no fim das contas, acabariam sendo apontadas como responsáveis. Além disso, a África do Sul não suportaria mais longos julgamentos, nem o já sobrecarregado sistema judicial conseguiria suportar o esforço.
Assim, os negociadores optaram por assumir um compromisso mútuo: anistia individual, em vez da anistia geral, em troca de toda a verdade a respeito do crime pelo qual se estava fazendo o pedido. “Anistia em troca da verdade?”, muitos se perguntaram, com uma preocupação genuína. “E quanto à justiça? Isso não equivale a incentivar a impunidade?” Antes de tudo é necessário ressaltar que esse jeito de lidar com a situação foi proposto exclusivamente para esse delicado período de transição, ad hoc – de uma vez para sempre. Em vez de incentivar a impunidade, a opção escolhida para seguir adiante ressaltava a responsabilidade, já que quem procurasse a anistia deveria admitir ter cometido um crime. Inocentes e aqueles que alegavam inocência, obviamente, não necessitavam de anistia.
Alguns argumentaram que isso significaria deixar os culpados escaparem ilesos. Significaria mesmo?
Todos sabem como é difícil dizer “sinto muito”. São duas das palavras mais difíceis de qualquer língua. Não acho fácil dizê-las nem na privacidade do meu quarto para minha esposa. Posso imaginar, portanto, o que deve ter significado para alguns deles terem de confessar publicamente, sob as lentes das câmeras de televisão. Era comum culpados serem considerados respeitáveis membros de sua comunidade. Provavelmente aquela seria a primeira vez que a família ouviria que aquele aparente bastião de virtude era, na verdade, membro de uma equipe policial responsável por torturas diárias de presos, ou que pertencia a um esquadrão da morte que tratava assassinatos como acidentes de percurso do depravado sistema de apartheid. O estigma da vergonha e da humilhação pública é um preço alto a se pagar, em alguns casos levando esposas ao choque e ao consequente pedido de divórcio.
Usar o argumento do “escapar ileso” significaria pensar apenas em termos de justiça punidora, cuja raison d’être é punir o perpetrador do crime. Há outro tipo de justiça: a restauradora, cujo propósito não é punir, mas curar. Ela estabelece como ponto central a humanidade até dos culpados das piores atrocidades, sem desistir de ninguém, acreditando na bondade essencial de todos que foram criados à imagem de Deus, defendendo que mesmo o pior de nós é filho de Deus e tem o potencial de ser uma pessoa melhor, alguém que pode ser salvo, reabilitado, que não precisa ser alienado, mas sim reintegrado à comunidade. A justiça restauradora acredita que um crime cause uma brecha, perturbe o equilíbrio social, o qual deve ser recuperado e a brecha, fechada, em um processo em que ofensor e vítima possam se reconciliar e retornar à paz.
ESTE TEXTO, EXTRAÍDO DE PALESTRA FEITA EM 2004 POR DESMOND TUTU, É PARTE DO LIVRO DEUS NÃO É CRISTÃO (EDITORA THOMAS NELSON BRASIL), COMPILAÇÃO DE DISCURSOS E MENSAGENS DESTE GANHADOR DO PRÊMIO NOBEL DA PAZ. O LIVRO TEM LANÇAMENTO PREVISTO PARA O DIA 28 DE MAIO.
O Estado de São Paulo. 19 de maio de 2012 | 17h 02

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“É chegada a hora de inverter o paradigma: mentes que amam e corações que pensam.” Barbara Meyer.

“Se você é neutro em situações de injustiça, você escolhe o lado opressor.” Desmond Tutu.

“Perdoar não é esquecer, isso é Amnésia. Perdoar é se lembrar sem se ferir e sem sofrer. Isso é cura. Por isso é uma decisão, não um sentimento.” Desconhecido.

“Chorar não significa se arrepender, se arrepender é mudar de Atitude.” Desconhecido.

"A educação e o ensino são as mais poderosas armas que podes usar para mudar o mundo ... se podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar." (N. Mandela).

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“A verdadeira viagem de descobrimento consiste não em procurar novas terras, mas ver com novos olhos”
Marcel Proust


Livros & Informes

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  • AGUIAR, Carla Zamith Boin. Mediação e Justiça Restaurativa. São Paulo: Quartier Latin, 2009.
  • ALBUQUERQUE, Teresa Lancry de Gouveia de; ROBALO, Souza. Justiça Restaurativa: um caminho para a humanização do direito. Curitiba: Juruá, 2012. 304p.
  • AMSTUTZ, Lorraine Stutzman; MULLET, Judy H. Disciplina restaurativa para escolas: responsabilidade e ambientes de cuidado mútuo. Trad. Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2012.
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