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14 de mar. de 2010

Justiça penal é autoritária e movida por interesses de classe, diz especialista

Que a corda sempre arrebenta do lado mais fraco, todo mundo sabe. O senador que desviou altas quantias de dinheiro do Congresso pode não ser detido, mas se um pobre roubar um pote de margarina, possivelmente irá para a prisão. Por que isso acontece? Segundo a advogada e socióloga Debora Regina Pastana, a Justiça penal é democrática no discurso e autoritária na prática, favorecendo os interesses de classe e perpetuando, muitas vezes, a impunidade.


O campo jurídico, hoje, se caracteriza pelo discurso garantista, pautando-se nas garantias constitucionais, em teoria, e optando pela aplicação de penas mais severas, criminalização de condutas e redução de benefícios na execução da pena, na opinião de Debora. “A gente está assistindo à consolidação do Estado punitivo”, afirma.

Para a especialista, que condensou seus estudos no recém-lançado livro Justiça Penal no Brasil contemporâneo: discurso democrático, prática autoritária, é preciso que os operadores do direito se posicionem politicamente, deixando de lado os interesses de classe, e sem trabalhar “a serviço do mercado”, como avalia a atuação nesse momento. “Não dá mais para trabalhar com aquela premissa de neutralidade, imparcialidade e distanciamento”.

O enraizamento do autoritarismo na cultura jurídica nacional, historicamente e também perpetuado através das instituições de ensino, dificulta o processo de mudança, assim como a sensação de insegurança social, mantida pelos profissionais. Entretanto, conforme ressaltou a autora, existem movimentos, “tímidos ainda”, que buscam a quebra do paradigma, como o direito alternativo e a Justiça restaurativa, presente em algumas comarcas do país.

A criação dos Juizados Especiais, conforme exemplificado pela professora, foi uma iniciativa a favor da democratização, mas que também acabou cedendo às pressões do campo e se tornou tão burocrática quanto a Justiça comum – fato que ela considera um retrocesso.

Como instrumento da mudança, Debora acredita também que o papel da universidade nesse processo é “primordial e, nesse sentido, os cursos de direito do país inteiro têm que se preocupar em trazer para dentro da sala de aula essa discussão, para mudar a mentalidade daqueles que vão se formar e formar o campo em um futuro breve”, enfatiza. “O debate é emergencial”.

Confira na íntegra a entrevista de Debora Pastana:

Última Instância - No campo penal, quais são as principais críticas ao Judiciário brasileiro atualmente?

Debora Pastana - No trabalho que eu desenvolvi, junto ao programa de pós-graduação na Unesp de Araraquara, o objeto de análise foi o campo jurídico na área penal. Fiz críticas observando do discurso, fundamentalmente democrático, para a prática, que não o acompanha; a prática ainda é autoritária. Para fazer essa avaliação, acabei seguindo alguns teóricos como Lacan, Sigmund Bauman, que trabalham com essa perspectiva de Estado punitivo, para ver se a nossa Justiça penal se alinha a esse paradigma, no qual optam pela criminalização de condutas, por penas mais severas, encarceramentos mais longos, pela redução de benefícios na hora da execução da pena. Então, verificando todas essas circunstâncias, na prática, eu pude acreditar que o campo jurídico, a Justiça penal, atua de forma autoritária, embora seu discurso seja democrático.

Última Instância - A que se deve esse autoritarismo?

Debora Pastana - Analisando a cultura jurídica nacional, percebe-se que parte desse autoritarismo está atrelado à própria história, na própria consolidação do campo jurídico no país; isso vai desde o ensino jurídico aplicado, até a própria formação classista do campo. Você observa que ali tem uma classe social burguesa que mantém seus interesses e isso repercute no autoritarismo frente à outra classe social, frente às classes populares, identificado também na criminalização da miséria, no encarceramento dos pobres.

Quando eu digo que a Justiça penal caminha para esse autoritarismo, caminha porque está alinhada a um projeto político liberal e as conseqüências são devastadoras para o cidadão, mas estão atreladas a um interesse político maior. Não adianta o campo jurídico querer formar o seu postulado se não assumir que deve atuar politicamente. Não dá mais para trabalhar com aquela premissa de neutralidade, imparcialidade e distanciamento. Ou o campo jurídico contesta essa adesão política, ou vai caminhar, trabalhar a serviço do mercado, que é o que ele está fazendo.

Última Instância - Quais são os motivos que afastam a Justiça penal da consolidação da democracia?

Debora Pastana - Embora o campo jurídico tenha o discurso democrático muito forte no Brasil, e aí eu destaco o movimento garantista como o movimento que de fato se apresenta como democrático, falta justamente alinhar as práticas a esse discurso. Nós temos uma resistência no campo jurídico. O discurso garantista mantém ainda as suas falas sempre pautado nas garantias formais, nas garantias constitucionais. Mas elas estão lá, na Constituição, não são colocadas em prática, não são tão eficazes como deveriam; o campo jurídico se concentra muito no discurso e não percebe a distância para colocá-lo em prática.

O discurso garantista deixa de lado a realidade, o cotidiano da Justiça, que é extremamente seletivo, extremamente autoritário e que caminha cada vez mais para a ampliação do controle penal.

Última Instância - Por que essa resistência por parte dos operadores do direito em colocar em prática o discurso democrático?

Debora Pastana - Essa resistência é considerada positivista se a gente identificar o apego da ciência jurídica ao postulado antigo, de neutralidade, imparcialidade e distanciamento. Mas esse autoritarismo está sim relacionado ao fato de que o operador de direito ainda não se sente confortável, ainda não se sente competente, para influir, atuar politicamente frente aos conflitos sociais —esse é um ponto.

Outro ponto que eu destaco no livro é que uma parcela desse autoritarismo deve ser atribuída ao perfil classista do próprio campo. O campo jurídico seleciona a parcela da sociedade que, ou pertence a uma classe social ou quer pertencer a ela: a burguesia, a ampla burguesia. E nisso eu incluo todos aqueles funcionários que lidam de maneira direta ou indireta com essa classe.

Última Instância - O medo e a opinião pública influenciam de alguma forma a manutenção do autoritarismo e afastam a democracia na Justiça? De que forma isso acontece?

Debora Pastana - Quando eu trabalhei com o medo na “Cultura do medo” [primeiro livro publicado pela autora], eu estava trabalhando com a opinião pública – até que ponto há interferência nessas medidas de endurecimento penal?. Eu verifiquei que, muitas vezes, o senso comum reproduz uma ideia de insegurança que realmente legitima posturas autoritárias no que se refere ao controle penal. Já nesse livro, “Justiça penal...”, eu também faço esse questionamento, se a opinião pública interfere na atuação do próprio judiciário e verifiquei que parte dela está no interior do próprio campo jurídico; parte dos operadores de direito, que lidam com a área penal, também incorporam esse pensamento, esse imaginário de insegurança. Então, obviamente, esses inseguros acreditam que a missão do judiciário seria aplacar essa situação, esse ambiente de insegurança.

Essa ideia de que estamos realmente vivendo um momento de insegurança também está presente de forma hegemônica e a serviço de uma classe. Quando o cidadão aceita um controle autoritário porque acha que esse controle é necessário, por estar passando por uma situação emergencial de insegurança, ele está cedendo parte de sua liberdade. Se o campo jurídico reproduz essa sensação de insegurança, ele contribui para a manutenção do autoritarismo.

Última Instância - Como deveria ser o papel dos profissionais que trabalham na área, então?

Debora Pastana - São várias as frentes de mudança. Primeiro, o operador do direito tem que assumir que não pode mais, no século 21, ser um profissional neutro, imparcial, distante dos conflitos sociais. Ele pode e deve se envolver politicamente nos conflitos sociais, no problema da criminalidade. O ponto é que, o controle social, não deve ser necessariamente, principalmente, penal.

De fato, o campo jurídico deve sim, não só defender a redução da Justiça penal, mas atuar politicamente para que uma série de crimes saiam da esfera penal, para que uma série de conflitos deixem de ser considerados crimes, para que outros crimes tenham suas penas reduzidas ou os benefícios sejam repensados. Uma reforma nesse sentido é importante, a descriminalização de algumas condutas que já não são mais de tamanha gravidade a ponto de exigir a presença da Justiça penal também.

Além disso, rever essa postura de severidade na aplicação da pena para aquelas condutas que ainda necessitam da intervenção penal. Temos que andar no caminho inverso do que nós estamos assistindo no momento. Hoje a gente está assistindo a consolidação do Estado punitivo.

Para reverter essa situação e consignar com seu discurso, o campo jurídico tem que caminhar no sentido contrário, de reduzir o controle penal para as práticas que realmente são graves o suficiente para necessitar a intervenção penal; e tem que fazer valer as garantias presentes na Constituição, os princípios constitucionais relacionados à matéria penal. Não tem que eliminar benefícios, eliminar garantias em prol de uma possível tranquilização social, mostrando a severidade da aplicação do direito. Pelo contrário, aí se forma um círculo vicioso, no qual se promete segurança com severidade, quando a severidade só se justifica se existir a insegurança.

Última Instância - A sra. acredita que o conservadorismo também predomina e acaba atravancando essa mudança de paradigma?

Debora Pastana - Quando a gente fala em conservadorismo, o que se deseja conservar? Tem uma parcela muito grande do campo jurídico que mantém o paradigma, que quer manter um paradigma? Tem. Primeiro, eles querem conservar interesse de uma classe; depois, interesse positivista, formalista. Outros movimentos no interior do campo jurídico vão se contrapor a essa postura conservadora, como o movimento de direito alternativo, por exemplo. O direito alternativo, embora atualmente ainda exista, está tímido, não tem mais a proeminência que teve na década de 90, mas é uma reação contra esse conservadorismo. Outra linha que é contrária ao conservadorismo positivista é o movimento que quer reforçar e fomentar o minimalismo penal e a intervenção mínima.

Última Instância - Existe um movimento para articular iniciativas que procuram democratizar o acesso à Justiça?

Debora Pastana - Existe essa possibilidade, sim. O próprio direito alternativo pode retomar o seu percurso, tanto o compromisso científico, quanto o compromisso militante. Esse movimento surgiu nas universidades, na década de 80, com uma perspectiva marxista, e acabou ficando como uma releitura alternativa do direito, fugindo dos paradigmas positivistas; ganhou projeção na década de 90, quando muitas universidades o discutem. Agora, nesse início de século, acompanhando a própria perspectiva marxista, ele perdeu um pouco de fôlego, da força e visibilidade no cenário jurídico.

Mas nada impede que se pautem de novo para essa assistência, que não deixou de existir. Por exemplo, na Unesp, tem o núcleo de estudos de direito alternativo, ou seja, esse é um tema que ainda é debatido na universidade, que ainda pode retomar aos poucos e auxiliar o campo jurídico na sua atuação, no dia a dia, no cotidiano. Os juristas alternativos ainda atuam e explicitam sua adesão política; os juízes, por exemplo, nas suas sentenças, em seus memoriais. Enfim, se isso se tornar uma prática cotidiana, esse movimento pode se retornar como um forte movimento contra-hegemônico.

Outras medidas que o campo jurídico pode tomar é de fato implementar algumas de suas argumentações. O movimento garantista, que também é um movimento democrático, mas apenas no discurso, pode começar a agir e colocar em prática parte daquilo que defende; intervenção mínima, por exemplo, redução do controle penal, redução da legislação penal, transferir parte dos conflitos para outras áreas do direito, como o direito do trabalho ou o administrativo. Reduzir mesmo o controle penal é caminhar inversamente, é não aderir ao Estado punitivo e, sinceramente, não é isso que eu tenho observado, pelo menos no momento próximo. Não há essa mudança dentro do campo jurídico.

Última Instância – A Justiça restaurativa também pode ser considerada uma iniciativa nesse sentido?

A Justiça restaurativa é um excelente exemplo de atuação contrária à Justiça penal autoritária, que caminha, no país, tentando trazer a comunidade para a solução de seus próprios problemas. Isso tem acontecido em algumas comarcas do país; tem notícias de Belo Horizonte, de São Caetano, experiências muito boas de Justiça restaurativa, mas que são tímidas no país. Ainda não se instaurou um debate amplo, complexo, sobre isso. Que tipo de crime, por exemplo, poderia ser decidido pela Justiça restaurativa? Os patrimoniais, por exemplo, poderiam perfeitamente ser decididos pela comunidade com o auxílio de juizes mediadores, sem a necessidade de uma intervenção penal.

Então essas são algumas iniciativas para de fato democratizar o campo. Não adianta só desburocratizar. Muitos operadores do direito acham que parte da ineficácia, da ilegitimidade do campo jurídico, é porque ele se tornou burocrático demais e por isso lento. O campo jurídico não é só lentidão e burocracia. A nossa Justiça penal ela tarda e ela falha. Mas não são só esses os problemas, ela atua de forma fascista, autoritária, subjetiva e esses são outros problemas muito mais graves.

Última Instância - Dos exemplos citados, qual seria o ideal para dar início a uma movimentação crescente a favor da Justiça mais democrática?

Debora Pastana - Não tem uma receita mágica e a mudança também não é da noite para o dia. Acho que a universidade tem um papel fundamental para a mudança da mentalidade jurídica, isso é fato primordial e, nesse sentido, os cursos de direito do país inteiro têm que se preocupar em trazer para dentro da sala de aula essa discussão. A universidade tem essa responsabilidade, em um primeiro momento, de fazer com que essa discussão ganhe importância para mudar a mentalidade daqueles que vão se formar e que vão formar o campo em um futuro breve.

Além disso, as associações de magistrados, doutores, advogados liberais, como o IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais) e a AJD (Associação de Juízes para a Democracia), que atuam na área e que começam a discutir o tema, também têm esse compromisso de promover o debate constante, para que o judiciário repense sua atuação.

Assim é que, paulatinamente, o campo jurídico pode vir a mudar sua conduta. Não adianta querer impor a ferro e fogo também, isso não vai acontecer. Até porque, você tem todo um ranço que é secular. Agora, o debate é emergencial; a crítica, a movimentação, dentro e fora da universidade, é fundamental para que o campo jurídico repense as suas posturas, suas resistências, suas obrigações.

O campo jurídico tem que ter em mente que presta um serviço público. Então, parte do seu problema, associado ao corporativismo, deve sumir. Ele tem que prestar um serviço público de qualidade, o mais justo possível.

Última Instância - A sra. delimita seus estudos durante o período contemporâneo. Nesse período, a sra. considera que em algum momento houve avanço na maneira como a política criminal é conduzida no país?

Debora Pastana - Com a abertura política, num primeiro momento, imaginou-se que o campo jurídico iria se reciclar, que o acesso à Justiça seria mais democrático. Uma das primeiras iniciativas foi a criação dos Juizados Especiais, para substituir o antigo Juizado de Pequenas Causas. Em 1999, foram criados os Juizados Especiais Cíveis e Criminais para atender a população de forma menos burocrática, mais informal. Com o passar do tempo, e aí já tem quase 20 anos de juizados especiais, o que alguns cientistas sociais acabaram verificando é que, esses juizados, a grande promessa democrática do campo jurídico, tornaram-se tão burocráticos e autoritários quanto a Justiça comum.
Em nenhum momento eles atenderam a essa expectativa social ou tornaram a Justiça democrática. Houve uma resistência muito grande por parte dos operadores, inclusive, em trabalhar nos juizados, por entenderem que era uma Justiça menor; era considerado um demérito trabalhar nessa área, a mais próxima da comunidade.  

Hoje, o que a Justiça penal apresenta é um retrocesso, porque além de não ter implementado os juizados especiais, conforme estabelecido na lei, de forma mais ampla, democrática e acessível às classes populares, ela tem caminhado no endurecimento penal e na ampliação do controle penal. A conduta da Justiça cede a uma política liberal que não é só aqui no país que acontece, lá nos EUA também tem acontecido, em alguns países da Europa isso também é verificado. A Justiça penal brasileira está acompanhando um projeto liberal, uma postura política que é do nosso contexto, que é do nosso momento histórico.

Última Instância – Essa política liberal pode ser associada a interesses econômicos?

Quando eu falo de endurecimento penal, estou tratando de temas que se associam desde a redução da idade penal, por exemplo, que tem um debate intenso no país [Brasil], até a privatização dos presídios, para mostrar como o Estado punitivo se associa a interesses econômicos também. Não há nada mais interessante para a iniciativa privada do que privatizar presídios, pois é a oportunidade de fomentar um setor da economia que aqui no país ainda é tímido. Mas nos EUA, por exemplo, movimenta milhões; na Europa, a mesma coisa.

Fonte: Última Instância. Daniella Dolme - 14/03/2010 - 16h30.

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