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26 de jan. de 2010

Artigo - Processo Penal Consensual: Breves Considerações sobre o Processual Penal


O Processo Penal é o mecanismo legítimo de efetivação do ius puniendi estatal, do direito de punir do Estado. Trata-se, pois, de um “conjunto de atos sucessivos e previstos em lei, que têm como objetivo apurar um fato aparentemente delituoso, determinar sua autoria e compor a lide (aplicar a lei ao caso concreto)”, nos dizeres de Tereza Nascimento Rocha Dóro1.


Assim sendo, cabe, por ora, analisar, em linhas gerais, a evolução desta disciplina, a fim de contextualizar e compreender as medidas processuais adotadas no combate (preventivo e repressivo) à criminalidade.




1. Sistema punitivo conflituoso: justiça penal tradicional 

A legitimação do Estado como único titular do ius puniendi surgiu com vistas a acabar com a dita “vingança individual” (ou “vingança privada”), na qual o próprio ofendido podia, ilimitadamente, punir o seu ofensor, legitimando, assim, a reação natural e instintiva do ser humano como medida de punição à conduta desviante (crime ou contravenção penal), contrárias ao pacto social2.

A partir de então, o Estado concedeu à matéria penalista tanto a função de tutela dos bens jurídicos de relevância penal, quanto à sistematização da aplicação e concretização desta tutela, observando-se, porém, os valores3 (princípios) limítrofes e norteadores que devem conduzir um verdadeiro Estado Social, Democrático e de Direito.

Contudo, a forma tradicional de concretização do ius puniendi, motivada muitas vezes pelo clamor amendontrado da opinião pública (que outras tantas vezes se pauta em informações de massa sensacionalistas), configura-se no ideal da máxima intervenção repressiva do Estado como o melhor meio de controle da criminalidade, fazendo da Justiça Penal um mero instrumento assecuratório do Estado de reafirmar a sua existência4.

Esta maximização da Justiça Penal tem como principal símbolo a cominação, aplicação e execução exacerbada de penas privativas de liberdade, elegendo-as como a mais eficaz das sanções penais5, pois, desta forma, se efetua a finalidade da pena de reprovar e prevenir condutas infratoras6.

Entretanto, como bem esclarece Raúl Cervini:

     “Atualmente, nenhum especialista entende que as instituições de custódia estejam    desenvolvendo as    atividades de reabilitação e correação que a sociedade lhes atribui. O fenômeno da prisionização ou aculturamento do detento, a potencialidade criminalizante do meio carcerário que condiciona futuras carreiras
criminais (fenômeno do contágio), os efeitos da estigmatização, a transferência da pena e outras características próprias de toda instituição total inibem qualquer possiblidade de tratamento eficaz e as próprias cifras de reincidência são por si só eloquentes. Ademais, a carência de meios, instalações e pessoal capacitado agravam este terrível panorama.7”.

Complementando tal explanação, vale citar as indagações de Rogério Greco, quando este questiona, justamente, a eficácia da pena perante o contexto social atual:

“De que adianta, por exemplo, fazer com que o detento aprenda uma profissão ou um ofício dentro da penitenciária se, ao sair, ao tentar se reintegrar na sociedade, não conseguirá trabalhar? E se tiver que voltar ao mesmo ambiente promíscuo do qual fora retirado para fazer com que cumprisse sua pena?8”.

Logo, percebe-se que a questão da finalidade da pena e de sua eficácia não é só um problema jurídico, senão político-social. Principalmente porque o sistema punitivo dito conflituoso (que encara o Processo Penal como um mero instrumento de composição litigiosa) acaba por não resolver o problema gerado pela prática do fenômeno social “crime”, pois sua preocupação está essencialmente voltada para o castigo a ser dado ao
agente infrator, atentando-se, assim, mais para “critérios de eficiência administrativa do que de justiça e eqüidade.”9.

Diante de tal ineficácia, o moderno Processo Penal busca por uma instrumentalização que garanta as verdadeiras expectativas de retribuição e prevenção, que não são apenas do Estado (titular exclusivo do direito de punir e sujeito passivo formal, tendo em vista o descumprimento de alguma de suas normas legais), mas também da vítima da infração (titular do bem jurídico penal afetado pela conduta típica), da comunidade onde se refletiu tal conduta (tida como vítima por equiparação) e do próprio infrator.

2 Sistema punitivo consensual: justiça penal restaurativa

Diferentemente do sistema tradicional, o sistema punitivo consensual busca resolver o conflito gerado pela conduta infratora de forma participativa, integradora, interpessoal e comunitária, no intuito de pacificar as relações sociais afetadas.

Valendo-se de técnicas e procedimentos de mediação e conciliação entre as partes envolvidas (infrator, vítima, comunidade e Estado), este modelo de Justiça Penal humaniza o Processo Penal, no momento em que aproxima estes integrantes em busca da solução mais satisfatória para todos: ao infrator, busca-se pela eficácia do papel repressivo e ressocializador da pena, através da aplicação de mecanismos que o faça vislumbrar a sua conduta e o reflexo dela perante todos os afetados; à vítima, esta forma de sistema punitivo dá-lhe um papel mais ativo durante o processo, acabando também por suavizar-lhe os efeitos da chamada “vitimização secundária” (que ocorre quando a já vítima da infração penal cometida “entra em contato com o sistema penal10”, submetendose à sua exposição); e ao Estado, ficam asseguradas a legitimação e a exclusividade de seu ius puniendi.

Tem-se, assim, novos mecanismos de administração e solução de determinados conflitos no âmbito penal, pautados no ideal de reparação generalizada dos danos sofrido, como por exemplo, em amplo sentido: a conciliação e a mediação. Diz-se “determinados conflitos”, pois, conforme bem esclarece Josefina Castro, essa justiça penal consensual, restaurativa, “não é nem pode ser tomada como panacéia universal. Nem todas as situações, mesmo quando configuram crimes de mesma natureza, são suscetíveis de mediação, desde logo pelas condições pessoais dos envolvidos.11”.


Por esse outro sistema punitivo, busca-se evitar condutas processuais meramente punitivas, seletivas e estigmatizantes, além de fomentar que sejam levadas ao âmbito processual penal questões extraprocessuais, mas de direta relação com a ocorrência da conduta delitiva, confirmando ser o crime um fenômeno, não só jurídiconormativo, mas também empírico-social. E em sendo assim, algo tão complexo, o seu controle só será eficaz quando Estado e sociedade se unirem em torno de programas bem elaborados12.

Diante de todo o exposto, faz-se essencial analisar o dito Processo Penal Consensual como um todo, aferindo os seus princípios e procedimentos, a fim de assegurar a sua viabilidade, preservando as garantias fundamentais constitucionais como os direitos e liberdades individuais e o devido processo legal.


NOTAS


1 DÓRO, Tereza Nascimento Rocha. Curso básico de processo penal. Porto Alegre: Síntese, 1999, p. 13.
2 Cf. MARTINS, Sergio Mazina; TEIXEIRA, Alessandra. A superação do homem disciplinar. Boletim IBCCrim, São Paulo, p. 15, jul. 2004.
3 Cf. AMARAL, Thiago Bottino do. Democracia constitucional e fundamentos de um sistema punitivo democrático. Mundo Jurídico. Disponível em: . Acesso em: 20 mar. 2009.
4 Cf. SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 315.


5 Segundo o artigo 32 do Código Penal Brasileiro vigente (Decreto-lei n.º 2.848/1940), “As penas são: I – privativas de liberdade; II – restritivas de direitos; III – de multa.”.
6 Tal finalidade retribuitiva e preventiva encontra-se prevista no caput do artigo 59 do vigente Código Penal Brasileiro (Decreto-lei n.º 2.848/1940), sob a indicação marginal “Fixação da Pena”, a saber: “O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime:” (grifou-se).
7 CERVINI, Raúl. Os processos de descriminalização. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 46.
8 GRECO, Rogério. Curso de direito penal: parte geral. v. 1. 11. ed. Editora Impetus: Rio de Janeiro, 2005, p. 493.

9 Cf. GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, António. Tratado de criminología. 2. ed. Valencia: Tirant lo Blanch, 1999, p. 1.014.
10 Cf. Ibidem, p. 1.012.
11 CASTRO, Josefina. O processo de mediação em processo penal: elementos de reflexão. Revista do Ministério Público, n.º 105, ano 27, jan-mar 2006, p. 154.

12 Cf. TOLEDO, Francisco Assis de. Princípios básicos de direito penal: de acordo com a Lei n.º 7.209/84 e a Constituição de 1998. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1991. p. 473, nota 19.





REFERÊNCIAS

AMARAL, Thiago Bottino do. Democracia constitucional e fundamentos de um sistema punitivo democrático. Mundo Jurídico. Disponível em: . Acesso em: 20 mar. 2009.

CASTRO, Josefina. O processo de mediação em processo penal: elementos de reflexão. Revista do Ministério Público, n.º 105, ano 27, jan-mar 2006, p. 154.

CERVINI, Raúl. Os processos de descriminalização. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995.

DÓRO, Tereza Nascimento Rocha. Curso básico de processo penal. Porto Alegre: Síntese, 1999.

GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, António. Tratado de criminología. 2. ed. Valencia: Tirant lo Blanch, 1999.

GRECO, Rogério. Curso de direito penal: parte geral. v. 1. 11. ed. Editora Impetus: Rio de Janeiro, 2005.


Como citar este artigo: SANTOS, Andrea Alves dos. Processo Penal Consensual: Breves Considerações sobre o Processual Penal. Disponível em http://www.lfg.com.br - 25 setembro de 2009.





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Livros & Informes

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  • AGUIAR, Carla Zamith Boin. Mediação e Justiça Restaurativa. São Paulo: Quartier Latin, 2009.
  • ALBUQUERQUE, Teresa Lancry de Gouveia de; ROBALO, Souza. Justiça Restaurativa: um caminho para a humanização do direito. Curitiba: Juruá, 2012. 304p.
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  • CERVINI, Raul. Os processos de descriminalização. 2. ed. rev. da tradução. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
  • FERREIRA, Francisco Amado. Justiça Restaurativa: Natureza. Finalidades e Instrumentos. Coimbra: Coimbra, 2006.
  • GERBER, Daniel; DORNELLES, Marcelo Lemos. Juizados Especiais Criminais Lei n.º 9.099/95: comentários e críticas ao modelo consensual penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.
  • Justiça Restaurativa. Revista Sub Judice - Justiça e Sociedade, n. 37, Out./Dez. 2006, Editora Almedina.
  • KARAM. Maria Lúcia. Juizados Especiais Criminais: a concretização antecipada do poder de punir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
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  • LEITE, André Lamas. A Mediação Penal de Adultos: um novo paradigma de justiça? analise crítica da lei n. 21/2007, de 12 de junho. Coimbra: Editora Coimbra, 2008.
  • MAZZILLI NETO, Ranieri. Os caminhos do Sistema Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007.
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